impressões impressionantes - do lado de lá, dois verões
asiáticos
conversava com um amigo sobre cinema asiático e ele reclamava da tendência daqueles filmes em privilegiar estórias de amores mal resolvidos e exaltar paixões platônicas. para ele, todo cinema asiático costuma cair na vala comum dos amores intangíveis, dos sentimentos contidos por séculos e séculos de cultura repressora. claro, retruquei. primeiro porque não é exclusividade deles. nosso cinema adora contar esse tipo de estória. não por acaso classificamos esse amor com o nome do fundador da filosofia ocidental. mas fui além. hoje, mais do que nunca, é possível ver diversos filmes asiáticos esmiuçarem dramas e paixões para além da repressão e da sublimação tão criticada por ele.
o ano de 2000, por exemplo, foi pródigo em bons filmes do lado de lá. zhang yimou lançou "happy times". takeshi kitano explorou o gênero policial/máfia com "brother". edward yang ganhou o prêmio de melhor diretor em cannes com yi yi; e eureka, de shinji aoyama, ganhou o prêmio do júri. "o tigre e o dragão", de ang lee, arrastou multidões aos cinemas de todo o mundo. e por aí vai.
todos eles falam de dramas e paixões, afinal, é a pedra fundamental de qualquer arte. ok, admito que os mafiosos de takeshi ou os monges voadores de ang lee não são lá muito profundos. mesmo assim, alguns filmes exploram a alma humana com mais cuidado, como yi yi ou eureka. mas não vou falar deles agora. dois outros filmes de 2000 me interessam aqui. um de hong kong, outro de hanói. filmes irmãos, complementares, ainda que muito diferentes. complementares, pois mostram como podemos oscilar entre sentimentos e atitudes tão contrastantes, e, infelizmente, sempre presentes. na verdade, comecei a pensar neles por uma série de coincidências que fui desvelando aos poucos. são “amor à flor da pele”, de won kar wai, e “as luzes de um verão”, de tran anh hung.
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coincidências
descobri que os dois estiveram em cannes, em 2000. os dois diretores haviam sido lançados na década de 90 pelo festival – kar wai em 1997 por “felizes juntos”, anh hung em 1993 com “o cheiro de papaia verde”. mas as coincidências não param por aí. o diretor de fotografia dos dois filmes é o mesmo: (mark) ping bin lee. a fotografia é o grande trunfo em ambos, e lee consegue pintar quadros fundamentalmente diferentes. o filme de kar wai despeja angústia e solidão na tela; o filme de anh hung, serenidade.
vamos adiante. seus nomes. o filme vietnamita faz referência direta ao verão em seu nome, tendo inclusive sido lançado em alguns países com o título “summer in hanoi”. curiosamente, o filme de kar wai, antes de ser lançado, foi anunciado em hong kong com o título provisório “beijing summer” – apesar de o filme se passar em hong kong! a referência ao verão é mais que apropriada. os dois filmes são lentos, cadenciados, e traduzem bem a morosidade dos dias e noites de verão. num deles, uma lentidão opressora; no outro, serena.
por fim, uma pequenina coincidência. os dois filmes têm em suas trilhas sonoras músicas que trazem um assunto em comum: olhos. “as luzes de um verão” inicia com “pale blue eyes”, de lou reed – em uma das melhores cenas que já vi de um casal despertando. “amor à flor da pele” utiliza o bolero “aquellos ojos verdes”.
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a prisão de kar wai
um bolero bem cantado pode nos afogar em melancolia. é o que faz a trilha sonora de kar wai, repleta de boleros e refletindo o tema principal do filme: o amor não realizado entre os dois protagonistas. chow, jornalista, e li-chun, secretária, são vizinhos de porta e descobrem que seus respectivos cônjuges estão tendo um caso. mas o destino brinca com suas vidas, e os dois traídos acabam se apaixonando. o filme mostra a dor e o sofrimento da paixão reprimida entre eles. não há como não comparar os dois casais do filme, os traídos e os traidores – detalhe curioso, kar wai em momento algum mostra o rosto dos cônjuges traidores. de um lado, o amor sufocado dos dois protagonistas, de outro, o relacionamento ocasional, talvez passageiro, mas sem dúvida mais honesto e livre de seus parceiros.
a pergunta que fica, claro, é por quê. medo, insegurança, orgulho por terem antes condenado a traição dos cônjuges, ou apenas submissão às convenções sociais, ou talvez tudo isso junto. a resposta mais simples parece ser a mais certa. medo. falta-lhes coragem para abraçar sua paixão. o filme explora o drama desse amor reprimido e a ausência de solução para os personagens a não ser a fuga, a solidão e o sofrimento. mas não é apenas a coragem que lhes falta. falta sinceridade, ao negarem o que sentem um pelo outro. no final do filme, chow, incapaz de libertar-se de sua angústia, recorre a uma velha tradição para poder extravasar o que sente, e sussurra em um pequeno buraco no muro de um templo budista todo seu amor por li-chun. seu amor é tão inadmissível que nem mesmo ele pode ouvir suas próprias palavras.
lembro das críticas do meu amigo. esse filme trata essencialmente do tipo de drama que ele condena. mas kar wai vai além e nos dá um contraponto, o casal de traidores. embora invisíveis, são presentes ao longo de todo o filme e citados exaustivamente por chow e li-chun. é possível perceber certa inveja destes pelo desprendimento dos traidores, afinal, não se contentaram com vontades reprimidas e fantasias: realizaram seus desejos. kar wai deixa claro sua posição, ao mostrar o quão doloroso e terrível é a escolha dos personagens principais. o filme não os martiriza nem os glorifica, pelo contrário. não há nobreza de espírito que justifique a angústia eterna de chow e li-chun. ao contar uma fábula moderna sobre amor não realizado, kar wai nos mostra como é fácil nos condenarmos a uma prisão invisível. quando nos falta coragem, sinceridade, e, talvez, simplicidade para aceitar nossos dramas.
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a solução de anh hung
simplicidade talvez seja o tema principal de “as luzes de um verão”. simplicidade ao acordar – e anh hung nos dá lindas amostras de como devemos fazê-lo. simplicidade ao comer, ao cozinhar. ao enfrentar os percalços do dia a dia.
simplicidade talvez seja o tema principal de “as luzes de um verão”. simplicidade ao acordar – e anh hung nos dá lindas amostras de como devemos fazê-lo. simplicidade ao comer, ao cozinhar. ao enfrentar os percalços do dia a dia.
o filme de anh hung acompanha a rotina de três irmãs ao longo de um mês. assim como no filme de kar wai, o tempo é arrastado. mas nesse caso, os protagonistas não se sentem sufocados pela lentidão das horas. em “as luzes”, não se luta contra o tempo nem se sofre com ele. há uma serenidade honesta em se aceitar o ritmo da vida, seja qual for. também como no filme de kar wai, as cores predominam. mas, em lugar do vermelho e do laranja fechados, das sombras noturnas e das luzes artificiais que compõem a atmosfera angustiada de “amor da flor da pele”, anh hung opta pelo verde e pelo azul, em todos seus matizes, e pela luz natural, ora macia, ora aguda, sempre benevolente. os tempos, os matizes e as luzes de anh hung envolvem as três estórias em serenidade. em “as luzes”, há felicidade pelo simples fato de se estar vivo.
não que sejam só flores. o diretor preenche as estórias das três irmãs com inúmeros dramas, sérios, leves, cruéis ou fortuitos. traição, bigamia, gravidez indesejada, amores não correspondidos. mas, diferente dos dramas de hong kong, os de hanói são vividos por completo. não são postergados, negados ou fantasiados. para anh hung, devemos buscar simplicidade em vivê-los. não questioná-los. não louvá-los nem desprezá-los. apenas vivê-los.
o marido bígamo, longe de suas duas famílias, numa praia deserta, especula com um pescador sobre fugir, mudar para lá, e assim talvez alcançar alguma paz. o pescador diz sem afetação nem presunção, “sei que morar aqui não é a solução”. seria a solução para um personagem de kar wai, não é aqui. ele toma coragem e conta sua vida dupla para a primeira mulher – a mais velha das três irmãs protagonistas. há choro, há dor e desespero. mas o tempo resgata a serenidade. depois da tempestade e do sofrimento, segue a vida. a dor e a angústia cedem, pouco a pouco. não há aquele sofrimento eterno ilustrado por kar wai, que faz seus protagonistas levarem todo o peso do mundo no peito. se precisamos viver nossos dramas, que seja sem hesitação.
do outro lado do mundo, dois verões traduzem as contradições humanas. queremos ser felizes, não queremos sofrer. queremos amor sem dor. kar wai nos mostra a inutilidade dessa busca. e nos lembra de como podemos complicar nossos dramas, e estender o sofrimento, tentando evitá-los. anh hung sugere que, quem sabe, a melhor forma de alcançar a tão sonhada felicidade seja abraçar os dramas da vida. basta simplicidade.
Marcadores: cinema
5 Comments:
Gustavo, não assisti aos filmes que você cita no texto, mas por ele é possível refletir um pouco sobre a maneira com que nos relacionamos com nossos sentimentos e valores. No final das contas é uma questão de escolha entre o verão sombrio e o verão colorido e cheio de vida. É também uma questão que extrapola a escolha, tem muito a ver com o nosso jeito de lidar com a vida, com o nosso conjunto de valores. Fiquei interessada, vou assitir aos filmes com "os seus olhos" e seu olhar atento.
Beijo,
Whilzi
Não conheço os dois filmes. Fiquei com vontade de vê-los.
Legal seu blog. Seu texto é muito,
muito...
Longo.
:-)
Combina com o nome do blog.
[]s
Oi, Gustavo! Fazia tempo q eu não passava por aqui e que surpresa boa esse texto. Como a maioria das pessoas - acho -, só conheço "O Tigre e o Dragão", mas fiquei morrendo de vontade de ver os outros.
Adorei o colorido do texto!
Bjs,
Ana.
www.olhosdagua.zip.net
Olá,
Adoro os filmes do chinês Won Kar Wai. Mas não conhecia esse diretor vietnamita. Vou procurar os filmes dele.
Abraço.
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