sexta-feira, dezembro 09, 2005

todos os eus e mais alguns - parte II

Dia desses estava conversando com um amigo sobre tragédias gregas. Tive meu primeiro contato com elas na faculdade e fiquei maravilhado. Surpreendentemente, ele desdenhou. Disse que achava tudo aquilo bobo. Simples assim, bobo. Emburrei. Citei logo Édipo Rei, blockbuster das tragédias, que chegou a ser encenada por Felipe Camargo e Vera Fisher nas nossas noites globais tempos atrás. Disse ele, tragédia com mãe já basta a minha. Eu repliquei, sério, tentando achar o tom certo pra convencê-lo: mas é uma das mais belas putarias que já foi escrita.
- Putaria por putaria, prefiro o Zéfiro. Amor incestuoso não combina com tragédia. Não é pano pra manga, entende?
- Claro que é, tá louco rapaz? É contradição entre amor materno e sexo.
- Sei não. Sentimento materno é sentimento de culpa. Sabe a síndrome de Helsinki?
- Estocolmo...
- Uma porra dessas geladas, a síndrome do seqüestrador e seqüestrado, em que o seqüestrado passa a defender o seqüestrador. A mãe perde nove meses de sua vida com náuseas, dores, deformações físicas, descontrole hormonal e fisiológico. E em troca ama aquilo que fez tudo isso a ela. Relação sadomasô das mais profundas. E relação sadomasô é um pulo prum coitozinho.
- Mas e o enredo. Pelo menos é um bom noir às avessas. Todos sabem o fim, só não sabem o que os personagens vão fazer pra chegar lá. E o jogo de charadas é a mãe de todas as novelas. E o crime principal, o clímax, vai ser cometido, ninguém pode fazer nada, só botar a culpa na Moira, a coitadinha.
- É... mesmo assim, nesse caso, prefiro o Eurípedes. O Sófocles é meio pernóstico, entende, fica fazendo um blablabla metafísico que me irrita.
E assim continuamos, por um bom tempo. Um tentando desqualificar o argumento do outro. Até que parei e pensei como a estória de Édipo e Jocasta era realmente mirabolante. E, por que não, poderia ter sido tudo bem diferente.
Encontravam-se quatro típicos cidadãos da sociedade atheniense numa das várias ante-salas da Acrópole-in destinadas ao divertimento sexual dos passantes. Tinham acabado de se conhecer numa festa à fantasia, todos devidamente mascarados. Com a ajuda do vinho, em pouco tempo o gelo estava quebrado. Faziam dois belos casais: um dominó e uma gata, um urso e uma colombina - é um mistério a fantasia da colombina; alguns dizem que foi conseguida por muambeiros fenícios.
Quando começam a se despir, o inesperado acontece: o dominó é Édipo, a colombina, Jocasta, Tirésias é a gata, e Laio, o urso. Pandemônio. Primeiro porque Laio, pouco depois de Édipo nascer, dissera a Jocasta que iria na esquina comprar cigarros e nunca mais dera notícias. Tirésias, o velho cego, era apaixonado por Laio e, não querendo ver o futuro corno sofrer, contara o Destino pouco nobre que lhe era reservado. Laio resolvera viver a vida, fugindo da casa amaldiçoada. Édipo e Jocasta, sabendo o que o Destino havia traçado para os dois, resolveram aceitá-lo e desde então formavam um belo casal. O que não se esperava era a volta de Laio depois de tanto tempo.
Jocasta é a primeira a se despir.
Laio -- Minha querida esposa! Por Afrodite, como estás bela!
Édipo -- Sinto estragar tua alegria, peludo atheniense, mas a colombina já tem dono – (Édipo tira sua máscara) - Que fazes aqui, mulher?
(Jocasta fica catatônica. Laio, porém, tira a máscara e se apresenta.)
Laio -- Filho meu, não sabes quem eu sou? Laio teu pai...
Édipo -- Tu tens coragem de se desmascarar, pilantra desalmado. Não bastasse ter fugido de casa há vinte anos, agora voltas como se o tempo não tivesse passado. Cão velho, Cérbero pulguento e desdentado. Descarado!
Laio -- Respeito, sou teu pai!
(Tirésias, que até então se deliciava com a discussão, enfim se pronuncia, tirando a máscara.)
Tirésias -- Acalmem os nervos, por Tonante. Tu, filho de Laio, estás muito alterado.
Édipo -- Silêncio, velho baitola. Falo com o patife que se diz meu pai e com essa pérfida, medéia prestes a me matar de desgosto. O que fazes aqui, ó górgona, sendo bolinada por este urso velho e babão! Tu não prestas...
Laio -- Olhas o modo que falas com tua mãe...
Édipo -- Não te intrometas, odiado pai, que eu te como de porrada.
Tirésias, saliente -- Falando em comer...
Laio -- A gata velha e cega tem razão. Viemos aqui para quê, afinal?
Édipo -- Tu que não tentes nada com minha mãe, irmão torto de Polifemo. E eu não traço esta caveira velha, mais feia que o próprio Caronte, nem que estivesse no inferno.
Tirésias, desanimando -- Como não?
Laio -- Como não? Por Eros, tu vais comer a gata velha, sim senhor!
Jocasta -- Olha bem, ele nem é tão velho assim, filho.
Tirésias, achegando-se -- É...
Édipo, furibundo -- Por Juno, é um complô! Até tu, Jocasta? Como podes? Aprendiz de Pandora! Estou desencantado! Vou embora deste pesadelo.
(Sai Édipo, em passos apressados e as mãos sobre o rosto.)
Laio -- Isso. Isca, isca! Aqui só tem lugar pra macho. Que fiz eu, ó Afrodite, para merecer um filho brocha!
(Quando Édipo sai, Laio imediatamente fecha e tranca a porta. Instantaneamente, Édipo vira-se.)
Édipo -- Espere lá. Minha mulher está aí dentro. Abra esta porta!
(Sem resposta.)
Édipo -- Por Hermes, abra esta porta (nada) - Por Hades, vou matá-lo, seu safado, ah, se vou! O Destino já traçou tua morte nas minhas mãos!
Laio, com delicadeza espartana -- O Destino pode traçar quem ele quiser, menos a tua mãe. Pois eu tenho a chave e ele não tem.
Édipo -- Kraken de aquário! Hidra sem cabeça! Minotauro mocho! Trapaçeiro! Covarde! Cuzão!
(Por mais pesados os xingamentos de Édipo, a porta permanece fechada. Desesperado, Édipo corre ao telephone mais próximo.)
Édipo -- Alô, polícia de Athenas, pelos deuses, acudam-me. Tem um sujeito comendo minha mãe!
Guardião -- Quem, ó desesperado cidadão?
Édipo -- Meu pai!

Marcadores:

Follow gugsweber on Twitter eXTReMe Tracker