sábado, dezembro 24, 2005

todos os eus e mais alguns - parte IV

vou ao barbeiro toda semana aqui ao lado. a barbearia é a instituição fundamental de todo homem. refúgio desse mundo metrossexual – o que quer que isso signifique. lá, os últimos exemplares de nossa raça se reúnem, se confraternizam, celebram as velhas virtudes e esquecem como é duro sobreviver num mundo em que fomos substituídos por um bom manobrista e um bom porteiro – que troca disjuntores melhor do que nós, conserta o chuveiro melhor do que nós, e ajuda a tirar as compras do carro. ah, sim, e os dois novos "coelhos" – os modernosos saca-rolhas e vibrador rabbits.
minhas idas à barbearia são sagradas, sempre para aparar a barba. sim a barba, talvez o único troféu que nos resta. aparar a barba na rua é uma declaração à sociedade, um alto lá, “perdemos tudo, todas as funções sociais, mas os pêlos do rosto ainda são nossos”. o cheiro de loção barata, as pilhas de playboy, os pôsteres de times e carros são uma bela recarga de testosterona. saio de lá cuspindo no chão, coçando o saco e louco pra dar caneladas em um jogo de futebol.
deixar que alguém faça sua barba requer total confiança. permanecer sentado, com a cabeça inclinada, os olhos vendados por uma toalha encardida, e um desconhecido com uma navalha na mão debruçado sobre você pode parecer suicidio. não é. é uma demonstração de fé. ele pode atravessar a lâmina em sua jugular. quebrar seu pescoço. pode fazer caretas e debochar de você, ou mesmo embeber a toalha em clorofórmio e, com você desmaiado, te seqüestrar ou vender seus órgãos. sacrilégio pensar isso; os barbeiros sabem de seu papel. são sacerdotes de um mundo em extinção, e cabe a nós, fiéis ao santo sudário da toalha encardida de lavanda e suor, confiar na precisão da navalha, mesmo de olhos fechados.
odacir, o dono da barbearia, me atende. paulista de santos, cabelos muito bem pintados com grecin, ouro nos dentes e nas correntes do pescoço, mocassim branco, mãos tão grandes que fazem sumir a tesoura. odacir nos lembra do que somos feitos – ou devíamos. quando fecha a loja, bebe cachaça com cerveja no só drink’s, o bar ao lado, enquanto assiste ao futebol. nossos trabalhos são abertos sempre com a mesma pauta: campeonato brasileiro, mulheres, música sertaneja, mulheres, campeonato paulista, mulheres.
estava esperando a minha vez, lendo uma playboy de 1998, enquanto odacir cortava o cabelo de um senhor grisalho, que discutia a importância do cigarro no carteado. pôquer, truco, não importa, o cigarro é tão necessário quanto o baralho, dizia. odacir resmungava comentários, atento ao cabelo do velho. estranhei-o. estava mais leve, mais solto. emagreceu? cortou o cabelo? cismei.
chega a minha vez, sento na poltrona, ele a ajeita e joga meu pescoço para trás. fitei-o e entendi. seu rosto brilhava. reluzia, como se o tivesse lustrado. aquilo me inquietou. não resisti e, enquanto ele vendava meus olhos, perguntei o que acontecera. estava doente? reação de algum remédio? “sabe o que é, companheiro. o abelardo, aqui do só drink’s, tem tevê a cabo. depois do jogo passou um programa, um tal de ‘contemporâneo’. deu umas dicas pra quem tem barba muito encravada. esse negócio de depilação do rosto. olha, minha barba é muito encravada, sabe. e não é que resolveu?”. demorei a entender. odacir, depilação, rosto. não. a barba não. nosso último troféu, odacir. estremeci. ele pegou a navalha, meus dedos do pé encolheram. não parava de pensar, por quê, por quê?, e pedia para que a morte fosse rápida e indolor, um corte na jugular e pronto. mesmo vendado, fechei os olhos e esperei pelo fim.
odacir terminou os trabalhos. minha barba, como sempre, perfeitamente aparada, o pescoço intacto. paguei, acendi um cigarro e saí.
nunca mais fui no odacir. mas passei a assistir 'contemporâneo' escondido em casa. vai saber.

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4 Comments:

Blogger Henrique Fróes said...

Lá na Barbearia do Onofre não tem dessas frescuras não.. e ainda rola um cafezinho, daqueles bem doces, para o cigarro pós-barba do HQEH, esse exemplar de uma pobre raça em extinção.. Ao lado, tem um snooker que se iguala à sofisticação do Só Drinks e, para compor o cenário, uma mesa de apontador de jogo do bicho..

2:38 PM  
Anonymous Anônimo said...

que triste ter que ir à barbearia, hein?

8:33 PM  
Anonymous Anônimo said...

Momento pornográfico: bela barba, meu.

Ligia

7:44 AM  
Anonymous Anônimo said...

Gu,
Gostei do seu "amor à barba". Em tempos de grise dos gêneros ela ainda me parece ser o que resiste de genuinamente masculino.
Abrço querido. Ando com saudades de você e da barba...
Whilzi

8:33 PM  

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