impressões impressionantes - o brilho e o feitiço
dia desses, conversei com um amigo sobre relacionamentos. falávamos de como é difícil aproveitar o momento presente, sobre como costumamos racionalizar tudo, e como tentamos antecipar o que pode acontecer e sofremos uma angústia eterna com isso. o papo me levou a um livro do andre comte-sponville, a felicidade, desesperadamente. a idéia básica do livro - que não li - é a de que devemos viver sem esperança, ou seja, sem esperar. viver o agora, sempre. a felicidade viria em aproveitar o presente, sem tergiversar, sem se angustiar sobre o que pode ou deve acontecer.
eu sei, não é nada fácil isso. papo interessante, mas, colocá-lo em prática, bem, são outros dobrões. mas o livro do sponville e o papo com o julio me lembraram de dois filminhos que tratam disso. um deles é uma comédia romântica despretencionsa chamada o feitiço do tempo - groundhog day. nela, phil connors (bill murray, em talvez sua melhor atuação até o recente encontros e desencontros), apresentador de previsão de tempo, se vê preso no mesmo dia. phil/bill acorda no mesmo dia, incessantemente, em uma cidadezinha onde foi gravar uma matéria para seu jornal. cada dia, bill acorda no mesmo lugar, presencia os mesmo acontecimentos. e passa a viver essa prisão no tempo e no espaço, sem perspectiva de que um dia possa libertar-se. tenta tirar proveito dela, provando todas as delícias e imoralidades possíveis. até elas cansarem. tenta se matar - kill phil, kill bill! -, mas continua acordando no mesmo dia, sempre.
a prisão eterna de bill remete a duas outras prisões conhecidas. uma é a prisão da vida mencionada no budismo - ou no hinduísmo, algo assim. o ser humano estaria condenado ao eterno ciclo do nascimento, vida e morte, revivido incansavelmente nas reincarnações. o eterno sofrimento do eterno retorno (não confundir com o eterno retorno de nietzsche, redentor), até, um dia, quem sabe, a ascensão e o nirvana. mas a prisão de bill é pior, pois ele tem memória. ele se lembra dos dias anteriores. e não há pior prisão que a prisão da memória do mesmo, num cruel e inesgotável dejá vu. o mesmo, sempre e sempre. e essa prisão lembra o mito de sísifo, condenado a rolar até o fim dos dias uma pedra para o alto de uma colina, quando essa pedra deslizaria morro abaixo e ele seria obrigado a rolá-la novamente, num moto contínuo semelhante a vida de bill no filme.
o que isso tem a ver com o livro do sponville? pensei cá com meus botões: ora, sísifo era o homem mais inteligente entre os homens - sisifo, sofos, sofia, saber. não poderia ser, então, a condenação dos deuses algo além de uma condenação, talvez uma provação, um teste? uma prova, para saber se o mais sábio dos homens poderia sobreviver, e viver, num mundo restrito a uma suposta repetição? se sísifo era o mais sábio entre os sábios, talvez ele fosse capaz disso, de rolar a pedra, sempre, como se fosse a primeira vez, de aprender, de arrancar o novo, de algo que pareceria ser uma simples repetição. e talvez, dessa forma, vivendo desesperadamente, sem pensar na possibilidade do que viria em seguida, acabaria por se livrar da prisão.
bill/phil, o morto vivo do filme, consegue. ao dar-se conta de que cada mesmo dia poderia não ser tão mesmo assim, ao resolver aprender, viver algo novo a cada dia - tocar um instrumento, fazer uma boa ação, conhecer novas pessoas, amar -, bill acaba por se livrar de sua prisão. o filme termina - para os que não viram, não leiam - com finalmente o dia seguinte surgindo. bill amanhece um novo dia. mas não seria necessário, pois ele já tinha alcançado isso. vivendo desesperadamente. sem almejar o amanhã.
e o que isso tudo tem a ver com relacionamentos? bom, aí entramos no outro filme, brilho eterno de uma mente sem lembranças - eternal sunshine of the spotless mind. nesse filme, joel - jim carey, mostrando por que é um dos melhores atores de sua geração (vai ter gente querendo me matar aqui, :-) ) - resolve apagar todas as lembranças de sua antiga namorada. vai a uma clínica, que lhe garante isso: apagar as lembranças relacionadas a uma pessoa. sua ex, clementine, já havia feito a mesma coisa - kate winslet, maravilhosa. o filme mostra o sofrimento e a dor de ter suas lembranças apagadas, sejam elas boas ou ruins. mas o tiro sai pela culatra, pois os dois se encontram, sem memória alguma um do outro, e se apaixonam de novo.
curiosamente, no final do filme - mais uma vez , não leiam -, os dois se deparam com a crueldade da velha moira, o destino: para apagar a memória, a clínica exige que se faça um relato de tudo o que desagradava na outra pessoa. características, manias, jeitos. num momento do filme, cada um ouve o relato feito pelo outro, enumenrando tudo o que mais odiava e achava insuportável no antigo companheiro. kate resolve partir da casa de joel, alegando que eles sabiam como tudo aquilo iria terminar, em alguns anos ele a acharia insuportável e vice-versa. e então surge a frase mais linda do filme, que pode redimir o sofrimento de todos. joel vira-se e diz: I don't care. eu não me importo. ele sabe que isso pode acontecer, mas a felicidade que sente no momento vale o risco. o que vale é o agora, e agora joel se sente realizado com clementine.
o eterno retorno no relacionamento entre joel e clementine se assemelha ao eterno retorno de bill. podemos viver presos a uma realidade modorrenta, que nos aterroriza com a possibilidade de se repetir sistematicamente. podemos sofrer por antecipação. ou podemos burlar esse jogo e viver o eterno retorno nietzschiano, em que o deslumbre pela vida nos joga um degrau acima, reinventando o mesmo, trazendo dentro da repetição incessante da vida a simples felicidade por estar vivendo, sem expectativas - como prega o livro de sponville. joel e bill tentam livrar-se da maldição de sísifo apostando no agora, no presente, e na felicidade, desesperadamente. e conseguem.
Marcadores: cinema
3 Comments:
Li e fiquei aqui engasgada com os comentários que teria a fazer sobre eternos retornos e o santo graal do amor romântico e da felicidade (que desastrosamente andam sendo refogados na mesma panela há alguns séculos). Que ironia, não? A gente vive um bom pedaço de dor com esse nosso desespero em buscá-los (ao amor e à felicidade), justamente numa época em que tentamos evitar sofrimento com igual empenho... Bem, os comentários ficariam maiores do que o post. Não vale a pena. Beijo.
Viver desesperadamente; não projetar, não planejar, não programar, não esperar. Parar de pensar e viver. Bernardo Soares diz “pensar é não saber existir”. Reinventar cotidianamente nossas formas de olhar o mundo, virginar o olhar.
Então, viver assim é como se a morte nos olhasse de perto e conseguíssemos colocar as coisas nos seus devidos lugares. É preciso viver o agora. Carpe diem. E uma liberdade enorme acontece em nós. Não caímos mais nas ciladas que os olhares/desejos dos outros nos aprisionam (os grandes outros dentro de nós). Não preciso de máscaras, tenho permissão para a honestidade total. E me perdi no que tava dizendo...hehe
Pois então. Joel e Clementine, nem me fale. Choro horrores toda vez que vejo esse filme. Ontem, qdo vc contou a história do filme pra Letícia, eu quase choro de novo. Para eles era preciso viver. Era preciso/urgente/necessário viver e reinventar. E tudo é vivido pela primeira vez de novo. E não há ensaio. Não há certeza. Não há garantia. E como eu sou enrolada. E olha que legal o que o desassossego do Fernando Pessoa fez acontecer:
“Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face (...). Nunca houve essa hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que for será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.”
“Viver é ser outro” E é isso aí pessoal! (hehehe)
Um abraço forte, gatinho
vixe, que comentário enorme! bom, pelo menos combina com o blog das infimidades!!hahaha
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