terça-feira, abril 17, 2007

impressões impressionantes - a origem do mundo, por Allen


“Estou pensando em ir a Nova York agora em setembro.”
“Férias?”
“Sim, não conheço.”
A mesa parou e virou-se para mim, em apavorante sincronia. Após cinco longos segundos, atacaram.
“Como...” “Você tem que visitar a galeria, qual o nome dela, Marta...?” “Olha, não fique em hotel, tenho um albergue...” “O João não ta morando ainda lá...?” “Sabe Murray Hill, ali na altura do Empire State? Tem uma loja de chocolates...” “Não vá no East Village, tá um saco, no Soho, tem um clube de jazz ali na altura da...”
Fiquei atônito. Todos eram moradores virtuais de Manhattan. Todos conheciam os melhores lugares, que nunca coincidiam. Todos tinham dicas, todos tinham conhecidos, todos tinham opiniões sobre a ilha.
“Você vai amar” “Ela vai te engolir” “Não tente ver tudo” “Você vai odiar” “Não tente entender aquilo, não dá, não dá” “Olha, Manhattan tem suas regras, entenda elas, você a domina” “O caos, o caos!” “Ela vai te esmagar” “Nenhuma regra, lembre-se, nenhuma regra, não procure padrões” “Você não vai conseguir decifrá-la, prepare-se. Ela vai te devorar” “Manhattan é a síntese do mundo, de tudo o que há”.
Regras. Siga as regras. Não há regras. Imponha suas regras. Se submeta. Nada fazia sentido. Pedi para que cada um me mandasse um e-mail com suas respectivas dicas, por fim se acalmaram, felizes pelo dever cumprido, e mudaram o assunto. Pude respirar fundo. Quando fui embora, um amigo meu me pegou pelo braço. “Aquilo é o início e o fim de toda a humanidade”.
Cismei. O início e o fim de tudo e de todos. A gênese e o apocalipse. Fui pra casa pensando naquilo e, apesar de toda algaravia, o susto inicial passou e comecei a cuidar mais da idéia. O que seria Manhattan. O que encontraria. Ruminava essas idéias bobas enquanto olhava os livros e DVDs da estante, e acabei fixando os olhos num filme. O oráculo, a verdade, quem sabe. Pensei, mal não vai fazer, e sentei para assistir Manhattan, do Woody Allen. Não sei se mestre Allen me ajudou com as expectativas quanto à ilha, mas me rendeu algumas insistentes idéias quanto ao nosso papel nela – e nesse mundinho que apenas a reproduz de forma um pouco mais colorida. Woody fala menos da ilha e mais de nós mesmos, pequenos seres ensimesmados, ocupados em ordenar e controlar o que nos cerca, e, ao mesmo tempo, ansiosos em nos enquadrar. Para isso, Woody pinta, em preto e branco, sua a criação do mundo e dos homúnculos – nós mesmos – que insistem em habitá-lo e reclamar para si a autoria de tal criação.

...

A cosmogonia de Allen começa com uma foto estática de Manhattan. Aos poucos, o clarinete de Gershwin anuncia o nascimento do mundo. Enquanto, vagarosamente, a música ganha vida e preenche os espaços, as fotos começam a se multiplicar e ganhar movimento.
Tomando para si o papel de Criador, Allen põe-se, em off – Deus não tem rosto – a descrever sua criação. Brincando com o fardo que se impôs, declara que aquela ainda seria uma cidade que existiria em branco e preto e pulsaria ao som de George Gershwin. E é isso que vemos. E é isso que ele nos oferece. E o mundo nasce em preto e branco. Ao som de Rhapsody in Blue.
Manhattan é uma das obras primas de Woody. Rica e bela, como a cidade, musical, cheia de idas, vindas, confusões e velocidades. Para os que não conhecem, o filme conta a estória de Isaac Davis (Woody). Ele namora Tracy (Mariel Hemingway), uma menina de 17 anos – ele tem 42. Isaac acha que a diferença de idade entre os dois não dá muito futuro ao relacionamento. Seu amigo, Yale, é casado e tem um caso com Mary (Diane Keaton). Isaac a conhece e, embora não tenha gostado dela inicialmente, vai aos poucos se interessando por ela. Termina com Tracy e inicia uma relação com Mary. Após uma curtíssima lua de mel, Mary o deixa para voltar com Yale. Isaac se dá conta que amava Tracy e vai atrás dela, mas ela está de partida para Londres. Fim. Como podem ver, não é lá um final muito feliz para Allen.
O filme trata de dois assuntos relacionados. De um lado, queremos que o mundo funcione segundo nossas regras e nossa racionalidade. Queremos ordem, mas queremos mais que isso, queremos a nossa ordem. Mas esquecemos um detalhe. Os demais personagens dessa peça. E seu livre-arbítrio.
No filme, Isaac se incomoda quando o mundo não gira para o lado que quer. Discute, por exemplo, com a ex-mulher (Meryl Streep, insuportavelmente perfeita), que pretende lançar um livro contando as intimidades do casamento dos dois. Não aceita o fato de sua ex-mulher tê-lo deixado por outra – no caso, outra mesmo, outra mulher. No final do filme, acha um absurdo Mary trocá-lo por Yale, afinal, Isaac se acha melhor que o amigo e rival. E briga com Yale, diz que as ações do amigo não são lógicas: primeiro tem um caso com Mary, depois a larga e incentiva o namoro entre Isaac e Mary, e depois a quer de volta. Yale se defende, diz que eles são apenas seres humanos, nem sempre lógicos, e que Isaac pensa que é deus. “Bom, eu preciso de um modelo”, responde Isaac. Mas seu modelo não abarca a irracionalidade do mundo. Não somos onipotentes, não somos oniscientes. Allen sabe disso, e sabe que o segredo está em aceitar as coisas como elas são. Por isso o título. Por isso Manhattan. Como amar uma cidade tão imprevisível e caótica? E ainda assim, Woody a ama. Amar Manhattan é o segredo da humanidade de Woody. Saber que há coisas que não há como controlar. E, ainda assim, ou por isso mesmo, as amamos.
Ao mesmo tempo em que, a todo momento, brincamos de Deus todo poderoso, o jogo acaba atuando contra nós. Pois acabamos, mesmo contra a vontade, nos subjugando às mesmas regras. Sejam as que criamos, sejam as que reconhecemos serem as regras corretas ditadas pela sociedade. Procuramos seguir aquilo que se espera de nós. Seguimos a profissão dos pais, vemos os filmes e lemos os livros que vão enobrecer nossa alma, vestimos de acordo com a moda. Queremos controlar nosso mundo e, ao mesmo tempo, somos controlados por ele. Esse é o jogo perspicaz de Woody. A eterna luta entre submeter o mundo e querer ser submetido a ele. Sim, querer. Queremos ser aceitos.
Por que Isaac deixa Tracy? Porque tem medo. Medo de que o relacionamento não dure pela diferença de idade? Talvez, mas principalmente porque acha que está errado, não está de acordo com o que seus amigos, ou a sociedade, esperam dele. Ele precisa de uma mulher da sua idade. Bonita e culta – uma intelectual, de preferência, que ele possa levar a encontros sociais e exibir. E, por que não, neurótica e insegura, afinal, todos seus amigos – e ele inclusive – são assim. Tracy é nova demais, pura demais, crua demais. Não tem a cultura de Isaac, não é intelectual, não é insegura – sabe muito bem o que quer. Mary/Keaton, por sua vez, adora desfiar seu intelectualismo, criticar mestres sagrados, fazer comentários sagazes e cheios de referências. É instável emocionalmente, pula de relacionamento em relacionamento, não consegue se comprometer. Mary é a novaiorquina ideal para Woody/Isaac. Ao menos é o que ele acha ser o certo.


Isaac ama Tracy. Nos momentos em que estão sozinhos, em casa, assistindo televisão, ou na rua, andando de carruagem pelo Central Park, Isaac se desarma de todos os preconceitos e pós-conceitos e abraça seu afeto. Mariel Hemingway representa o único personagem humano, e ciente de sua humanidade, no filme. A única pessoa que chora no filme. Nos emocionamos e nos envolvemos com Tracy, não apenas pela beleza de Mariel, mas porque ela é, apesar dessa beleza, de carne e osso. Ela sente, sofre, ama. Tracy é a síntese da humanidade em Manhattan. A própria representação daquilo que Allen tanto ama naquela ilha. Seus amigos podem ser a caricatura dos comportamentos, manias e atitudes dos novaiorquinos dos filmes de Allen. Mas não são reais. Tracy é real.
Isaac precisa ver seu mundo perfeito desmoronar para entender que não é Deus, apesar de dizer ser Ele seu modelo. O livro de sua ex sai, Mary o deixa, Tracy vai para Londres. Ao mesmo tempo, precisa passar por tudo isso para ver que os padrões sociais, suas regras prediletas e preferidas, nem sempre estão de acordo com o que queremos, desejamos e amamos. Quando Yale diz que está tendo um caso, Isaac desaprova. “As pessoas deveriam se unir para sempre, como pombos ou... católicos”. Essa é a verdade para ele. Yale é feliz seguindo outra verdade. Isaac se recusa a aceitar isso.
No final do filme, deitado em seu sofá, depressivo, arrasado pela série de infortúnios, Isaac resolve responder à pergunta por que a vida vale à pena? “Groucho Marx, Willie May, o segundo movimento da sinfonia de Júpiter, filmes suecos, educação sentimental de Flaubert, Marlon Brando, Frank Sinatra, aquelas incríveis maçãs e pêras de Cézanne, os siris de Sam Wo’s... o rosto de Tracy...” Isaac se levanta, tenta ligar para ela, ninguém atende, revolve atravessar meia Manhattan correndo até chegar ao prédio dela. Tracy está saindo para o aeroporto. Vai para Londres. Ao vê-la, através da porta de vidro, penteando o cabelo no hall do edifício, ele sabe que a ama. Mas ainda não sabe que não é Deus.
Ele pede que ela fique. Ele reprova sua viagem. Afinal, aquilo não estava em seus planos. Ela diz que voltará em seis meses. Ele diz que ela poderá voltar outra pessoa, que tudo pode acontecer em seis meses. Nem todos se corrompem, diz ela. “Você precisa acreditar mais nas pessoas.” Allen/Isaac se agita, pára, fica pensativo, olha para os lados, por fim... sorri. Finalmente, entendeu. Nem tudo está sob nosso controle. Tracy é Manhattan, viva. Humana. E ainda assim, e por isso mesmo, ele a ama.
Se Manhattan me ensinar algumas das lições que a Manhattan de Allen me ensinou, já será mais do que o suficiente. Não somos deuses, tampouco fantoches. Quem sabe encontro lá um pouco disso, uma faísca da gênese de toda humanidade. E sua revelação.

Marcadores:

11 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Esse post é mais longo que o filme do Woody Allen.

11:32 PM  
Anonymous Anônimo said...

Adorei o que vc escreveu...
Tem muito tempo que não leio um post tão bem escrito.
Parabéns.

4:51 PM  
Anonymous Anônimo said...

Adorei o que vc escreveu...
Tem muito tempo que não leio um post tão bem escrito.
Parabéns.

4:51 PM  
Anonymous Anônimo said...

Bravo, Bravo, Bravíssimo!!
Vou correr para assistir esse filme..
[]'s

5:19 PM  
Anonymous Anônimo said...

Muito legal sua visão do filme. Pretendo vê-lo novamente.

4:48 PM  
Anonymous Anônimo said...

Lindo!!! As fotos e o texto...

8:24 PM  
Blogger Viva said...

Bárbaro!

10:25 PM  
Anonymous Anônimo said...

muito bonito
^^

3:53 PM  
Anonymous Anônimo said...

Muito bonito mesmo!
(Só acho que a covardia de Isaac é beemmm real...)

7:35 PM  
Blogger Sheila Campos said...

Concordo com o comentário acima: a algum tempo não leio um post tão belo. Espero que sua viagem seja igualmente encantadora, deslumbrante!

1:41 AM  
Anonymous Anônimo said...

adorei seu texto e vou dar um jeito de ver o filme. entendi o sentido de humanidade que você atribuiu à palavra. mas às vezes eu penso que a "falta de humanidade" das outras figuras do filme também é humana. eu penso que tudo é humano, mesmo o que há de mais "desumano". tudo. até nossos instintos são humanos, se a gente considerar que somos "animais do tipo humano". até nosso lado animal é humano. bom, gostei muito do seu texto. vou ver o filme.

8:44 PM  

Postar um comentário

<< Home

Follow gugsweber on Twitter eXTReMe Tracker