terça-feira, fevereiro 12, 2008

todos os eus e mais alguns - parte XII

– Respire fundo.
– Shhhh.....rumpf...coff... runfgrh... coff coff...
Ela tira o estetoscópio das minhas costas. Deve ter me olhado sem paciência. Não sei, estou de costas. Diz:
– Sem tossir, por favor.
Não paro de tossir. Por isso perder o almoço e esperar para ser encaixado. Eu vou encaixar o senhor, cochichou a atendente, preocupada. Só fiz tossir forte dez minutos. Ininterruptos. Encaixado em dois tempos. No meu caso, não preciso forçar a tosse. Ela vem. Forte. Por isso a consulta. Tosse. Tusso. Dez minutos. Pronto. Encaixado.
O primeiro exame que ela faz, auscultar, desde que sem tossir, por favor. Eu tento explicar. Ela: sem tossir, por favor.
Tento.
– Hummfffff.... rurgh...cofff... ahnnn... roarhg... coff coff...
Ela tira o estetoscópio das minhas costas. De novo. Deve ter balançado negativamente a cabeça. Feito uma cara de desgosto. Enfado. Derrota. Estou de costas. Não digo nada. Tento de novo. Digo antes “agora vai”, tentando animá-la, espero ela se posicionar e respiro, segurando a tosse com toda força e concentração do mundo.
– Nossa...
Ela diz nossa. Clínica geral. A cada dez casos que atende, nove devem ser de gripe. Ou tosse. Como a minha. E ela diz pra mim: nossa. Ela me ausculta, a mim, e diz: nossa. Ela não deve dizer nossa pra todo mundo. Ou diz. Sim, deve dizer. Pra todos. Será mineira ela? Claro. Mineiros dizem muito nossa. Nossa isso, nossa aquilo, dizem à toa, sem motivo nenhum, nossa, trem besta. Nossa. Nóss. Nu. Não. Ela é carioca. Cariocas raramente dizem nossa. E quando dizem nossa é pra não dizer “caralho fudeu mermão!”. Uma médica não pode dizer caralho fudeu, diz nossa, pra não assustar.
Pneumonia dupla, tuberculose, um desses hantavírus, retrovírus, pantovírus. Uma hepatite pulmonar, raríssima, meu senhor. Um vazamento de bílis nos bronquíolos. O senhor não tem pulmão, nenhum dos dois, respira por guelras. E elas estão com câncer. Há um navio cargueiro liliputiano dentro dos seus pulmões, meu senhor, e uma maria fumaça e uma escola de samba, e a bateria da escola está atravessada, causando arritmia cardíaca letal. Três dias de vida? Dois. Talvez horas.
Ela vai à mesa e senta. Espera que eu me recomponha e sente a sua frente. Demoro. Sei que demoro. Nem me dou. Rápido?, qual, tudo acabado. Tudo acabado, sem pressa. Demorar nos botões, nos cadarços. Pensar sobre eles. Velhos esses sapatos, rá, esses sapatos!, passamos muito juntos, e um sorriso melancólico. Um nossa e pronto, agora é olhar pela janela e me emocionar com um bem-te-vi na árvore, uma mosquinha zunindo, o vento. Com o cotonete jogado na lixeira do consultório. Nunca mais o meu. Nunca mais. Não, não penso nada disso. Ela não deixa.
– O senhor beba água. Muita água. Volte aqui em cinco dias.
Demoro a entender. Cinco dias... cinco? Não eram dois? Horas? Cotonete, sapato, melancolia... cinco dias. Água. E eu, a boca aberta, palerma. Respirei? Não, senão tinha tossido. Respiro agora? E a água?
Enfim respiro, tusso e balbucio.
– Mas... quanto...?
Ela pensa, nem isso, e num átimo de segundo.
– Cinco litros. Por dia. Água. Cinco dias. E o senhor volta aqui.
(continua? continuo?)

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3 Comments:

Blogger Luiza... said...

Sim! Continue! :)

2:28 PM  
Blogger Erica Abe said...

Hahahahahhahaa!! Adorei o texto!

E aí, ta vivo ainda? Ou morreu afogado? :-D

Quero saber o final da estória!

Bjim

10:40 PM  
Anonymous Anônimo said...

você é o engraçado inteligente mais bobo que eu conheço. mas o fato realmente inegável é que atrai hordas de fãs incontinentiss.

11:38 PM  

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