todos os eus e mais alguns - parte VI
fotos por gustavo weber
- o senhor lembra de mim?
virei o rosto e examinei o garçom. baixo, aparentando mais idade que tinha. uns 20, 30, talvez. ele sorria, meio sem jeito. fiquei alguns segundos em silêncio. antes que pudesse esboçar uma palavra, emendou.
- sou o naldinho. da foto. lembra?
dez anos. há dez anos fotografei naldinho na praia de copacabana. fazia um ensaio sobre a praia, era meu último dia. passava das quatro da tarde. um sol inclemente nos afogava numa luz pesada e pastosa, e a maresia entranhava corpo, lente e espírito. já havia terminado o trabalho. perto do hotel meridien, um grupo de meninos de rua jazia esparramado na areia, junto ao mar. me aproximei, sentei perto deles, e, como para justificar minha pausa na caminhada, comecei a fuxicar minha mochila. não parecia turista, nem banhista. de tênis velho, calças jeans, camiseta branca surrada, barba por fazer e uma mochila militar a tira colo, estava tão fora de contexto que eles mal me notaram. menos naldinho. ele se levantou e zigue-zagueou até mim. estava drogado. seus olhos não focavam em mim, permaneciam vidrados. mesmo assim, tentou se agachar, bambeou e caiu sentado ao meu lado. perguntou o que tinha na mochila. equipamento fotográfico, sou fotógrafo, disse eu, pensando se devia me arrepender ou não de confessar que meu precioso material estava todo lá. ele abriu um imenso sorriso, jogou a cabeça pra trás e gargalhou. levantou-se rápido e tentou correr até seus amigos, tropeçando nas próprias pernas. virou-se pra mim e gritou, vem, vem tirar foto da gente. tirei minha cannon da mochila, levantei e rumei até eles.
- naldinho!
era um bar em botafogo, passava das duas da manhã. apenas minha mesa continuava cheia e exigia o trabalho dos garçons.
- naldinho!
levantei-me e o abracei, e ele, constrangido, se afastou um pouco e estendeu a mão. seu sorriso desbotara. não poderia mais sorrir como naquele dia, nunca mais. seu rosto agora era marcado por rugas, cicatrizes, dor, perdera dentes, perdera o brilho que se podia notar mesmo naquele dia, drogado de tanta cola de sapateiro. forçava um sorriso triste. seus olhos não mais vidravam no infinito. mas pesavam, pesavam muito, como se o peso do mundo estivesse em suas pálpebras.
- como... onde estão os outros?
tiago, joão e caio permaneciam esparramados no chão, anestesiados demais para qualquer reação. latas de cerveja e refrigerante em punho, mais meia dúzia ao redor. erguiam a cabeça num esforço sobrenatural e cheiravam sofregamente a cola que enchia as latas, antes de desabarem novamente, enterrando a cabeça na areia. naldinho, capaz de alguma iniciativa, tentava animá-los, fazia piruetas, se jogava no meio deles, atirava latas vazias e areia para o ar e ria-se.
- morreram.
sorriu um sorriso triste e sereno e foi fechar nossa conta no balcão.
depois das fotos, naldinho sentou-se ao meu lado e perguntou em que jornal sairiam.
- é pro globo?
- não. vou fazer uma exposição. elas vão virar quadros, bem grandes. assim, desse tamanho.
ele arregalou os olhos e tentou se concentrar nas minhas mãos, imaginando o tamanho da posteridade.
ele arregalou os olhos e tentou se concentrar nas minhas mãos, imaginando o tamanho da posteridade.
- tudo isso? vou ser famoso! vou ser famoso!
- não sei naldinho. não sei.
- é difícil isso?, apontou pra minha máquina.
- a gente aprende.
- sabe, quero ser fotografo. ter fotos no globo. muitas fotos. assim, desse tamanho! e riu-se com os braços estendidos, deitado de costas pra areia.
permanecemos lá por um tempo, eu mostrando a máquina a naldinho, explicando como funcionava, abertura, tempo de exposição, luz, ele tentava se concentrar, pronunciava com a língua travada as novas e complicadas palavras - obturador, microssegundos - e ria.
- e a fotografia, naldinho?
- reginaldo, chefe, agora é reginaldo. olhou para o chão, meio sem jeito.
- muito caro né. essa coisa é cara. sabe, não esqueci não, até pensei, mas essas máquinas. tão caras né. um dia eu compro. eu sei que compro. permaneceu olhando para o chão, enfim ergueu a cabeça, olhou para o cristo redentor e virou-se pra mim.
- olha lá. olha os braços dele. ainda vou fazer fotos daquele tamanho. olha. olha os braços dele. assim. sorriu e por um microssegundo me lembrou o naldinho que conheci.
- o reginaldo está aí? voltei no dia seguinte no bar de botafogo. debaixo do braço, minha velha cannon embrulhada pra presente.
- não veio.
- ...
- tiroteio. ele mora ali, no dona marta. teve tiroteio ontem, a policia tentou subir. uma dúzia morreu.
- pode entregar isso aqui pra ele?
o dono do bar me olhou desconfiado, olhou para o embrulho e cruzou os braços.
- olha meu filho. essa garotada vem e vai. semana passada mesmo sumiu um garçom. o reginaldo não veio hoje, já coloquei outro menino no lugar. sinto muito. virou-se, pegou um pano velho e fingiu limpar o balcão.
olhei para o embrulho, acendi um cigarro e saí. antes de entrar no carro olhei pro cristo. permanecia lá, sereno, de braços estendidos, medindo as fotos de naldinho.
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4 Comments:
pois é, tantos naldinhos e fotógrafos e gustavos e rosanas e...
todos substituíveis, todos largados no mundo. ui, ai.
é, o mundo está um pouco pior do que poderia ser.
Lindo texto, Gustavo. Mesmo. Digno das Weberianas, lembra? Beijo.
pronto, agora deu vontade de conhcer vc.
pronto, agora deu vontade de conhcer vc. Digno das Weberianas, lembra? tantos naldinhos e fotógrafos e gustavos e rosanas e...
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