terça-feira, novembro 21, 2006

vontade - datas


Há um ano, me deu vontade de fazer um blog.

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quinta-feira, novembro 16, 2006

todos os eus e mais alguns - parte X

"Egyetlen, Érintetlen, Lefordíthatatlan"
(Kocsis Ferenc)

Foi o Cris que me disse, viu numa livraria. Cismei. Como podia, ele não sabia magiar.
– Você não é o único louco por aqui.
– Ei ei, eu não sou louco, só gosto de línguas esdrúxulas. Semana passada estava em Praga, aprendendo checo. Por quatro dias. Deu até pra aprender a comprar pão com alho.
– Pão com alho?
– Eu decorei a frase Cris, mas não sabia qual das palavras era pão, qual era alho, enfim, na dúvida, passei quatro dias indo na padaria pedindo pão com alho.
– Língua estranha... parece russo...
– Parece alemão...
– Isso, imagine a língua russa. Tire as vogais. Agora imagine a língua alemã. Tire as vogais. O que sobrar das duas, você pega e mistura. Dá checo.
– Eu tenho Fim de Jogo do Beckett em checo. É lindo! Acho que tem três vogais na primeira página. Uma página inteira, três vogais. Já tentou ler? Tantos estalos, vlak, tlak, plok, tok, acho que o Beckett ia ter adorado ver isso!
E rimos até.
– Checo é tão difícil que, se você sabe escrever nessa língua, vira presidente do país. Olha o Vaclav Havel.
– Tem o Kafka.
– Escrevia em alemão.
– Hum... o Kundera...
– Em francês.
– É...
E caímos na gargalhada.
– Magiar é melhor, não é tão duro. Mas não dá pra encaixar em nada. Às vezes parece turco, às vezes, romeno, às vezes, checo, às vezes, chinês. Louco. Lindo. Já pediu pra Bori falar em magiar com você? Há! Fale pra ela, Seretlek, seretlek kicsim! Ela vai adorar. Ou te dar um tapa.
– Seretlek kicsim... o que significa isso Cris? Não estou xingando ela ou nada do gênero certo?
– Pergunte a ela. Ela vai adorar, confie em mim. Mas, sério, sabe o que faço? Pego os livros que uso na aula, Shakespeare, Pinter, Beckett, e procuro as versões em magiar. Tento, página por página, linha por linha, uma palavra de cada vez. É exaustivo, mas é uma delícia. Com um bom dicionário é rápido, acho que termino a peça do Pinter em, vejamos... dois meses.
E riu sozinho da própria loucura. Uma peça. Algumas dúzias de páginas. Dois meses.
– Concordo. Magiar parece lindo. No trem pra cá, uma velhinha me ensinou um pouco.
– ?
– Ok, me ensinou uma palavra. Estação de trem. Pu. Ficou repetindo. Pu, tchu tchu tchu, pu, tchu tchu tchu, fazendo com a mão um trenzinho estacionando numa plataforma.
– Como era mesmo?, perguntou sorrindo.
– Pu, chu chu chu, pu, chu chu chu...
E se desdobrou de tanto rir.
– Qual o problema?
– A velhinha te enganou, meu caro. Pu não é estação de trem. Pu é a abreviação, como ut ou u é abreviação de utca, rua. Estação de trem é pályaudvar. Ninguém fala pu, isso não existe.
– Como?
– Pályaudvar.
– Como?
– Pályaudvar. Pa-ly-au-dvar.
– Esquece.
A velhinha de cabelos cor de bolinho de beterraba havia me pregado uma peça. Tão solícita e atenciosa com seu tchu tchu tchu. Ou era louca, ou estaria ainda agora rindo da traquinagem. Depois dessa, passei a suspeitar de toda e qualquer velhinha de cabelos cor de bolinho de beterraba.
– Mas, sobre o livro que você viu. Cris, como sabe que era ele?
– Um romance? Não há muitos romances com esse nome. Na verdade, acho que nenhum. Só esse. Vi na pilha de livros em magiar, na seção de ficção. Só pode ser ele.
– A capa, como era?
– Não lembro bem... se não me engano tinha aquela estátua grande de Jesus Cristo, que fica no alto de um morro. É no Rio de Janeiro, não é? Confere?
Era ele. Só poderia ser. Budapeste, do Chico. Em magiar.

Saí atrás do livro. Cris me deu uma lista de livrarias. O escocês estava em Budapeste há um mês, era professor de um cursinho de inglês. E rato de livraria nas horas vagas. Expliquei para ele a importância do livro do Chico. Um dos principais assuntos do livro era a dificuldade do idioma magiar e Chico brincava ao longo de todo o romance com isso. A ironia da ironia seria encontrar esse livro na língua que o autor usara como material para as brincadeiras e jogos do romance. Perguntei, Cris, será que eles falam inglês, comprar um livro pode ser complicado. Ele riu, disse que não haveria problema.
Primeira tentativa, Megastore Alexandra, na Karoly Körút. Quatro andares de livraria. Sim, de livros, Não havia DVDs, CDs, só livros e um discreto café. Entrei excitado, pensei, não deve ser difícil achar sozinho, e comecei a procurar pelas prateleiras. Um mar de palavras estranhas brotava na minha frente. Seções de kitalálás, elképzelés, prozairodalom, tudományos-fantasztikus irodalom, költemények. Depois de zanzar pelo primeiro andar inteiro, não conseguia mais focar os olhos, não adiantava, nada se parecia com nada, onde estavam os radicais latinos, gregos, saxões? Exausto, procurei uma atendente.
– Do you speak English?
– Nem... (não) Csak magyar. Csak magyar. (apenas magiar).
– French?
– Nem. Csak magyar.
– Deutsch?
– Nem
- Español?
– Nem
– Russian! (claro, eu não falo russo)
– Nem
– Portuguese? Japanese? Chinese?
– Nem.
– Puta que o pariu.
– Nem.
Nada de pânico. Não tinha morrido de fome em Praga, passara três dias comendo pão com alho em checo, poderia sair dessa também.
– Book...
– Yô.
– Name of the book: Budapest.
– Budapest? Budapest! Yô, Budapest!
– Yô yô yô, Budapest!, disse eu exultante.
A menina pediu para que eu a acompanhasse. Finalmente, Budapest do Chico. Mal cabia em mim de tanta excitação. Paramos. Olhei para a seção: idegenforgalom. Embaixo: turizmus. Essa palavra eu conhecia. Olhei os livros: Frommer, Lonely Planet, Berlitz, todos guias turísticos para a maravilhosa cidade de Budapeste.
– Puta que o pariu.
– Nem.

Segunda tentativa. Nyugati Tér. Que é tér, mesmo, não é abreviação de nada. Tér, praça. Mais uma megastore. Mais quatro andares. Mais uma atendente, as mesmas perguntas, do you speak english, claro que não e por aí vai. Mencionei que o livro se chamava Budapeste, mais uma vez a moça levantou as sobrancelhas, sorriu e me levou até a seção de turismo, feliz pelo dever cumprido. Eu, aceitando a trama kafkiana, segui placidamente. Olhei as prateleiras e disse com a melhor cara de enfado que pude encontrar, turismuz nem, tursimuz nem.
– Nem?
– Nem.
Segue-se agora o diálogo entre mim e a atendente. Eu falando em inglês, ela, em magiar. Reproduzi o diálogo ao Cris, que me ajudou a traduzi-lo. Como não sabia patavina de magiar, não havia entendido o que acontecera até o Cris me explicar. Detalhe, cs em magiar se pronuncia como um X.
– The author. Buarque. The author, Buarque (o autor, Buarque. O autor, Buarque)
Ela foi a um terminal de computador. Perguntou.
– Szerzö Buarque? (autor Buarque?)
– No. Sergio is the father. Chico is the author! (Sergio é o pai, Chico é o autor)
– Csikó? (cavalo?)
– Yes, Chico!
– Csiko is Szerzö? (o autor é um cavalo?)
– No! Chico is Chico, Sergio is Sergio. The author of Budapest is Chico! (Chico é Chico, Sergio é Sergio, o autor de Budapeste é Chico)
– Mi? (o que?)
– No, not you, Chico. See, I like Chico, I don’t like Sergio. Chico writes novels. (Não, você não, o Chico. Eu gosto do Chico, não gosto do Sergio. O Chico escreve romances).
– Te... (você) szeret... (gosta) csiko? (cavalo)
– What the fuck... (que diabos...)
– Fuck? Te szeret baszik csiko? (você gosta de transar com cavalos?)
– Chico! Yes. Chico!
Imediatamente, a atendente chamou um segurança e fui expulso da livraria. Provavelmente, a partir daquele momento estaria banido de todas as livrarias de Budapeste por minha zoofilia.
Não preciso descrever pormenorizadamente que me tornei a piada do albergue onde estava. Sim, me perguntavam em cada canto se eu falava magiar, sim, me perguntavam se eu sentia saudades do meu cavalo no Brasil, sim, até me deram um pônei de pelúcia para ajudar em minhas noites solitárias em Budapeste. Mas Cris me convenceu de que eu não deveria esmorecer. O livro estava lá. Em algum lugar. Cris era Cris, assim como Chico era Chico e tudo mais, e, quanto a mim, bom, depois do último vexame, dava por encerrada a busca pelo livro do cavalo.

Os dias passaram fagueiros em Budapeste. Na verdade, em Buda. Como o famigerado ghost-writer do livro do Chico, estava hospedado em Buda. No meu penúltimo dia na cidade, caminhava pela Bartók Bela, vindo do Danúbio, e pensava como era engraçado o costume na Hungria de se colocar o primeiro nome depois do sobrenome. O compositor Bela Bartók era, em sua terra natal, Bartok Bela. Franz Liszt era Liszt Franz. Imediatamente me corrigi. Liszt Ferenc. Ferenc. Ferenc era Franz em magiar. Ferenc era Francisco em magiar. Parei no meio da rua, ocupado com meus pensamentos, quando percebi que estava na frente de uma livraria. Bartok, Liszt, Ferenc, Francisco, músicos, Chico, músico, seria um sinal?, o pensamento viajava comigo enquanto olhava apalermadamente as vitrines da livraria quando uma atendente apareceu no lado de fora da loja e ofereceu ajuda. Desconfiei. Seria uma cilada para me prenderem, meu rosto estaria estampado em todas as livrarias de Budapeste, procura-se brasileiro maluco zoófilo? Arrisquei e entrei na loja.
Já conhecedor da ladainha de Budapestes, guias turísticos, cavalos, autores e que tais, levei a atendente a um terminal de computador e declamei, em alto e bom magiar: regény (romance), Budapest. Szerzö, Buarque. A moça, rapidamente, teclou as informações. Esperou. Esperou. Esperou. Enfim respondeu. Yô.
– Yô?
– Yô.
– Yô, yô! Não sei se me ajoelhei, se a tirei para dançar, se chorei debruçado ao balcão. Sei que, depois da minha brevíssima epifania, enfiei a cara no monitor do computador e vi que, sim, Budapest estava lá, sim, em magiar, e havia quatro exemplares do livro. Após outra longa batalha para me fazer entender, levei todos os quatro da loja.

À noite, no albergue, mostrei o livro ao Cris. Ele olhou e sorriu. Entendia a minha felicidade, apenas ele poderia entender, apenas ele sabia que aquilo era mais que um troféu, mais que uma tara por línguas esdrúxulas. Seria a piada final. O que os ingleses dizem, the twist on the tale, a reviravolta final. Cris abriu o livro aleatoriamente, leu uma frase. Parou. Olhou pra mim e disse, “Agora sim. Agora sim, temos o final da sua estória. Apropriado, muito apropriado”. Mostrou pra mim a frase e traduziu. Aquela, enfim, era a piada final.
...
Na estória de Budapeste de Chico, há um momento em que o protagonista José Costa e sua mulher vão ao consulado húngaro no Rio de Janeiro. É uma noite em homenagem a um poeta húngaro famoso, e os dois são os únicos não húngaros no lugar. O poeta declama um poema conhecido, que, ao final de cada estrofe, traz três palavras. Elas são repetidas por todos os presentes, que conhecem o poema de cor. Ao final de cada estrofe, repetem, “Egyetlen, Érintetlen, Lefordíthatatlan”. Ao final de cada estrofe, “Egyetlen, Érintetlen, Lefordíthatatlan”. Foram as palavras lidas por Cris no livro. Depois de minha odisséia pelo idioma magiar, era de Chico a última brincadeira. Eram suas as últimas palavras. “Egyetlen, Érintetlen, Lefordíthatatlan”.

“Único, imaculado, intraduzível”.

Ah, sim, o nome do poeta húngaro, no livro, é Koscis Ferenc. Ferenc. Francisco. Chico.

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