sábado, janeiro 20, 2007

epigramas a la bumper sticker - dezoito

Karluv Most, Praga, outubro de 2006, 12 graus. Foto por gustavo weber

"Essa vida de eremita é, às vezes, bem vazia.
Às vezes tem visita. Às vezes, apenas esfria."
(Paulo Leminski, La vie en Close)

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sábado, janeiro 06, 2007

todos os eus e mais alguns - parte XI

“O que você acha?”
“Vai levar um caldo. Na primeira.”
“Vai. Mas na segunda.”
“Feito.”
“Feito.”
Esperávamos ele romper a arrebentação. Furava uma onda, submergia, emergia um pouco mais à frente, e mais uma vez, e mais uma vez, até chegar lá fora. Esperava, nós esperávamos. Esperar. Esperar. O tempo do mar. Até descer a primeira onda. Se caísse logo de início, a aposta era minha. Se levasse um caldo na segunda, era dele. Se não caísse, apostávamos no próximo surfista que entrasse no mar.
As apostas dos sucos eram sempre com gente nova, que não conhecíamos, ou com os garotos que estavam começando. Era moeda pequena. Sanduíches ficavam para dias e surfistas especiais. Dias de ressaca, gente como Teco, Daniel, Bicudo, Marcão, Pípou. Esses eram da casa, tinham experiência. Viviam naquele mar. No caso deles, as apostas ganhavam ares mais sérios. Tínhamos que acertar quantas vezes cairiam da prancha enquanto estivessem na água surfando. Difícil. Só Jacó tinha acertado até então, uma vez, com Daniel. Cinco quedas. Em duas horas na água, Daniel caiu cinco vezes. Era julho. O mar estava alto, de ressaca, chovia, o Arpoador estava perigosíssimo, só três surfistas na água e dois salva-vidas, loucos, pegando ondas de dois metros de altura. E nós, eu e Jacó, na areia, assistindo, debaixo de chuva fina. Eu no meu umbrela, Jacó no seu inseparável capote. Jacó ganhou um sanduíche de peru com abacaxi. Foi assim durante seis meses. Dias de sol, de chuva fina, de vento. Não importava. Estávamos sempre lá.
Naquele ano, em 1998, tinha aula ali perto, de inglês, na rua Paul Redfern, sempre pela manhã, por volta das oito. Toda terça. Terminava a aula e ia andando até o Arpoador, passear. Um dia, Jacó sentou ao meu lado na areia. Sujeito grande, uns trinta e tantos, cabeça raspada, roupas sujas, rasgadas. Fedia a cachaça. Perguntou se eu era surfista. Disse que já tinha sido, segurei meus óculos, mostrei, agora não dá mais. Ele olhou meu cigarro e disse, assim é que não dá, garoto, assim é que não dá. Perguntei se ele tinha sido surfista. Ele me olhou sério, pensando se eu estava troçando. Viu que não estava. Parou e olhou a arrebentação, pensou. Disse que o seu trabalho era mais pra lá, no azul.
“Mas agora não dá mais”, e olhou para o vazio onde deveria estar sua perna direita.
foto por Gustavo Weber

Jacó tinha sido pescador na colônia de pescadores Z-13, no posto seis de Copacabana. Pescava desde que se dava por gente. Conhecia todo aquele litoral, da Marambaia à Itacoatiara. As ilhas, todas. Um dia, sua rede prendeu no motor do barco. Nunca tinha acontecido, um erro de amador, o piloto da traineira era novo. Estavam a alguns quilômetros da costa, na imensidão azul. Ele e mais dois pularam na água, faca nos dentes. Passaram quase duas horas dentro d´água, desfazendo os nós, cortando o mínimo possível a rede. A água estava com cheiro de sangue, alguns peixes tinham sido tragados pela hélice do barco. Sentiu um puxão para debaixo d´água. Outro. A água se encheu com seu sangue. Os outros dois o tiraram da água, fizeram um torniquete na altura da virilha, o cação havia destroçado sua coxa direita. Perdeu muito sangue, passou um mês no hospital, amputaram a perna, sobreviveu. Nunca mais subiu num barco. Não tem lugar mim dentro de barco, nunca mais, disse ele.
Enquanto fazíamos nossas apostas na beira do mar, Jacó me contava suas estórias de pescador. De quando seu barco ficou à deriva por quatro dias, motor quebrado, e foram parar na baía de Angra. De quando era criança ainda, e viu seu pai arpoar uma baleia. De quando foi mordido por uma tartaruga em Copacabana. Tartaruga não morde gente assim, disse eu. Pois ela me mordeu, respondeu rindo-se. Não há tartarugas por lá, retruquei. Ele me mostrou uma cicatriz horrível na batata da perna. Olhei desconfiado, comentei, você é pescador Jacó, você sabe o que falam de pescadores. Ele riu até.
Morava na Rocinha. Perguntei se não era mais comum o pessoal da colônia morar no Morro do Pavão. Ele desconversou. Não gostava de falar da colônia. Um dia perguntei por quê. Havia brigado com eles, culpado seus colegas de barco pelo infortúnio. Saiu da colônia. Não poderia ficar no Pavão, foi morar na Rocinha. Começou a mendigar. A beber. Passava metade do dia lá, na praia, olhando a água. O Arpoador fica a quinhentos metros da colônia. Era o mais perto que conseguia chegar.
Entre uma aposta e outra, sempre que podia, eu trazia o assunto da colônia na conversa. Perguntei se ele não podia ficar na areia, fazendo as redes. Sabia que os pescadores mais velhos costumam ficar mais em terra, trabalhando com as redes, ajudando na venda. Ele cismava, não dizia nada. Um dia me disse, você sabe quem é o meu pai? Claudionor.
“Seu Nonô?”
“Isso. Nonô é meu pai.”
Nonô era o pescador mais antigo da Colônia. Devia ter oitenta anos. Não entrava mais no mar, ficava responsável pelas redes, fabricá-las, consertá-las.
“Eu briguei com meu pai. Foi ele que me expulsou da colônia. Disse que era errado eu culpar meus colegas. Era coisa do mar, e a gente não culpa o mar. Que era para eu me desculpar, pedir perdão a eles pelo que andei dizendo. Eu peguei minhas coisas e fui embora.”
Perguntei por que ele passava tanto tempo na beira do mar. Ele disse, sem pensar:
“Perto de muita água, tudo é feliz.”
“Quem... quem te disse isso?”
“Meu pai sempre diz”.
“Essa frase é de Guimarães Rosa. Um escritor famoso.” E ri.
“Por que você tá rindo? Eu posso ter cultura garoto!”
“Não é isso Jacó. Você é pescador. O Guimarães Rosa era mineiro. Minas não tem mar...”
“Mas ele bem que entendia de mar”, e rimos.
“...”
“...”
“Jacó, volta pra colônia. Lá você vai ser mais feliz.”
“Um dia.”
“Vamos fazer uma aposta. Você volta pra colônia se eu te fizer chorar.”
“?”
“Te dou um livro. Você lê. Se o livro te fizer chorar, você volta.”
Ele riu e riu. Não parava de rir.
“O que é Jacó?”, perguntei, brincando indignação.
“Eu não sei ler!”
“Eu leio pra você. Pronto. Eu leio. Feito?”
“Feito.” “...”
“O que é Jacó?”
“Não é a bíblia não, né garoto?”
“Não Jacó, não é a bíblia.”
“A bom. Feito.”
Apareci com o livro do Hemingway para ele. O velho e o mar. Passamos uma manhã e uma tarde na praia. Li o livro. Ele ouvia sério. Às vezes fazia comentários, eu fazia isso, eu fiz aquilo. Expliquei para ele que o nome do protagonista, Santiago, o velho do livro, era o mesmo nome dele. Jacó. Jacob. Iago. Santo Iago. Ficou pensativo. O livro terminou. Ele não chorou. Parado, na frente do mar do Arpoador, pegou um punhado de areia na praia e ficou brincando um instante. Levantou com suas muletas, foi na beira do mar, lavou a mão, fez o em-nome-do-padre. Ficou um tempo parado na frente do mar, voltou pra mim e disse.
“Tá. Você ganhou garoto. Vamos lá amanhã.”
“Seu Nonô bom dia.”
“Bom dia meu jovem.”
“Eu fiquei sabendo que o senhor é o melhor por aqui em fazer rede de vôlei.”
Ele riu. Sabia quer ele fazia redes de vôlei. Era o melhor.
“Queria encomendar uma rede.”
“Pois não.”
“Mas queria te pedir um favor. Quero que o senhor faça com alguém.”
Jacó chegou de mansinho. Estava atrás de uma amendoeira. Pediu a benção ao pai. Ele olhou, olhou. Com olhos de por quê.
“A rede vai demorar...”
“Não tem problema.”
“... Esse aí não sabe nada de rede. Vai demorar.”
“Não tem problema.”
Parou. Olhou pra Jacó. Pra mim. Pensou. Pediu pra sair da mesa. Estávamos atrapalhando. Estavam no meio de um jogo de tranca. Toda manhã, por volta das dez, os pescadores mais velhos jogavam tranca. Foi até um sujeito que analisava umas redes, perto da água. Apontou de lá para o filho. Conversaram. Eu e Jacó permanecemos ali, duros, tensos. Jacó trincava os dentes e forçava as muletas contra o chão. Voltou.
“O senhor acerte o preço com aquele homem ali.”
Agradeci. Estava indo embora, já na calçada, seu Nonô gritou meu nome, e veio em minha direção de vagar. Olhou pra mim, os olhos duros.
“Obrigado meu filho. Obrigado.”
Naquele verão fui morar em Brasília. Nunca mais havia passado pela colônia. Há duas semanas, durante o natal, voltei ao Rio e passei por lá. Encontrei seu Nonô, quase noventa, na mesma mesa de tranca. Ele me reconheceu, pediu licença, veio falar comigo. Perguntei como estava o trabalho. Ele perguntou como estava a rede. Disse que meu amigo, que havia comprado a rede, nunca havia tido nenhum problema. A rede tinha oito anos e parecia nova. Ele sorriu, se ofereceu para qualquer conserto, se um dia fosse necessário. Perguntei por Jacó.
“Morreu.”
“?”
“...”
“...”
“Morreu. Atropelado. Aqui, na Atlântica. Há um ano.”
Não sabia para onde olhar. Não me vinham palavras, sequer minhas condolências. Apertei sua mão, disse que tinha sido bom revê-lo. Ele puxou minha mão, fez que eu me curvasse em sua direção. Sussurrou.
“Ele estava feliz meu filho. Isso é bom.”
“...”
“Dizem que perto de muita água, tudo é feliz meu filho.”
Olhou com aqueles olhos de pedra pra mim. Largou a minha mão, baixou a cabeça em silêncio, virou e foi andando de vagar de volta ao seu jogo de tranca.


foto por Miriam Poppe

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terça-feira, janeiro 02, 2007

dois mil e sete

Caríssimos,
Agradeço a todos os meus cinco leitores pela preferência. Como diz meu amigo Ina-bomber, servimos bem para servir sempre. Bom, é verdade que não tenho servido muito bem, nem sempre, nem pra muita coisa. Mas, entre trancos e barrancos, esse singelo espaço chegou a 2007. Incrível extraordinário.
Como chegamos até aqui, não sei, portanto, o jeito é aproveitar. Apertem os cintos, em breve mais estórias por aqui.
Feliz dois mil e sete,
Feliz dois mil e sempre.



"Perto de muita água, tudo é feliz"
(Guimarães Rosa)

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