quinta-feira, dezembro 29, 2005

epigramas a la bumper sticker - sete

de colchão em colchão
chego à conclusão
meu lar é no chão

(Leminski, la vie en close, devidamente lembrado por me encontrar acampado na casa de meus avós, com doze pessoas para três quartos)

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sábado, dezembro 24, 2005

todos os eus e mais alguns - parte IV

vou ao barbeiro toda semana aqui ao lado. a barbearia é a instituição fundamental de todo homem. refúgio desse mundo metrossexual – o que quer que isso signifique. lá, os últimos exemplares de nossa raça se reúnem, se confraternizam, celebram as velhas virtudes e esquecem como é duro sobreviver num mundo em que fomos substituídos por um bom manobrista e um bom porteiro – que troca disjuntores melhor do que nós, conserta o chuveiro melhor do que nós, e ajuda a tirar as compras do carro. ah, sim, e os dois novos "coelhos" – os modernosos saca-rolhas e vibrador rabbits.
minhas idas à barbearia são sagradas, sempre para aparar a barba. sim a barba, talvez o único troféu que nos resta. aparar a barba na rua é uma declaração à sociedade, um alto lá, “perdemos tudo, todas as funções sociais, mas os pêlos do rosto ainda são nossos”. o cheiro de loção barata, as pilhas de playboy, os pôsteres de times e carros são uma bela recarga de testosterona. saio de lá cuspindo no chão, coçando o saco e louco pra dar caneladas em um jogo de futebol.
deixar que alguém faça sua barba requer total confiança. permanecer sentado, com a cabeça inclinada, os olhos vendados por uma toalha encardida, e um desconhecido com uma navalha na mão debruçado sobre você pode parecer suicidio. não é. é uma demonstração de fé. ele pode atravessar a lâmina em sua jugular. quebrar seu pescoço. pode fazer caretas e debochar de você, ou mesmo embeber a toalha em clorofórmio e, com você desmaiado, te seqüestrar ou vender seus órgãos. sacrilégio pensar isso; os barbeiros sabem de seu papel. são sacerdotes de um mundo em extinção, e cabe a nós, fiéis ao santo sudário da toalha encardida de lavanda e suor, confiar na precisão da navalha, mesmo de olhos fechados.
odacir, o dono da barbearia, me atende. paulista de santos, cabelos muito bem pintados com grecin, ouro nos dentes e nas correntes do pescoço, mocassim branco, mãos tão grandes que fazem sumir a tesoura. odacir nos lembra do que somos feitos – ou devíamos. quando fecha a loja, bebe cachaça com cerveja no só drink’s, o bar ao lado, enquanto assiste ao futebol. nossos trabalhos são abertos sempre com a mesma pauta: campeonato brasileiro, mulheres, música sertaneja, mulheres, campeonato paulista, mulheres.
estava esperando a minha vez, lendo uma playboy de 1998, enquanto odacir cortava o cabelo de um senhor grisalho, que discutia a importância do cigarro no carteado. pôquer, truco, não importa, o cigarro é tão necessário quanto o baralho, dizia. odacir resmungava comentários, atento ao cabelo do velho. estranhei-o. estava mais leve, mais solto. emagreceu? cortou o cabelo? cismei.
chega a minha vez, sento na poltrona, ele a ajeita e joga meu pescoço para trás. fitei-o e entendi. seu rosto brilhava. reluzia, como se o tivesse lustrado. aquilo me inquietou. não resisti e, enquanto ele vendava meus olhos, perguntei o que acontecera. estava doente? reação de algum remédio? “sabe o que é, companheiro. o abelardo, aqui do só drink’s, tem tevê a cabo. depois do jogo passou um programa, um tal de ‘contemporâneo’. deu umas dicas pra quem tem barba muito encravada. esse negócio de depilação do rosto. olha, minha barba é muito encravada, sabe. e não é que resolveu?”. demorei a entender. odacir, depilação, rosto. não. a barba não. nosso último troféu, odacir. estremeci. ele pegou a navalha, meus dedos do pé encolheram. não parava de pensar, por quê, por quê?, e pedia para que a morte fosse rápida e indolor, um corte na jugular e pronto. mesmo vendado, fechei os olhos e esperei pelo fim.
odacir terminou os trabalhos. minha barba, como sempre, perfeitamente aparada, o pescoço intacto. paguei, acendi um cigarro e saí.
nunca mais fui no odacir. mas passei a assistir 'contemporâneo' escondido em casa. vai saber.

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sexta-feira, dezembro 23, 2005

quarto - porque o exílio é dentro

relendo o texto sobre o filme do walter salles, percebi o quanto a noção de exílio lembra idéias de gaston bachelard no livro poética do espaço. ele mostra a necessidade da casa para nós, sem o qual viveríamos dispersos pelo mundo. a casa seria a morada do ser. para bachelard, esse espaço seria tão vital que, se fosse necessário, poderia ser reduzido a um canto, qualquer que seja - um quarto, um debaixo de cama.
o exílio dificulta a construção desse espaço - daí sua crueldade - por estarmos desterrados, longe do que nos acolhe, do que reconhecemos e do que nos reconhece. e, por isso mesmo, nos impele a fazer de qualquer canto um refúgio da alma. a solução última seria, talvez, um refúgio em si mesmo, isolando-se do fora. mas existiria esse fora? o quanto de nós permanece dentro, em nós? há de fato um dentro em contraposição ao fora? talvez não. afinal, não somos feitos de nossa circunstância - uma dobra do mundo, como diria deleuze? mas, se esse fora não nos compõe, não nos diz nada, o que nos resta, desterrados em nós mesmos?

I
Esquecer-me dentro
– como um quarto.
Fazer-me, alhures, aposento exílio
Para estancar os movimentos
E acomodar o quanto de mim exato,
sem arranjos ou mobílias.

Distinguindo
o que de resto ainda adere inequívoco e o que
adereço.

II
Reter-me por um segundo por um quarto
Dentro
(gaiola de Faraday
que espalhe silêncios
e espantalhe o mundo)
Para apropriar o verdadeiro o próprio o eu
E aposentar o que não me for indispensável.

III
Esquecer-me dentro em quarto exílio
– para buscar o que me resta
intrínseco –
E não me descobrir
senão
inutensílio.

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terça-feira, dezembro 20, 2005

epigramas a la bumper sticker - seis

Felicidade se acha é em horinhas de descuido
(João Guimarães Rosa, Tutaméia)

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domingo, dezembro 18, 2005

impressões impressionantes - o exílio, por waltinho e daniela


há algumas semanas, tive vontade de escrever sobre o poema "canção do exílio", de gonçalves dias, uma das pedras fundamentais da poesia brasileira. talvez por estar tão próximo de rever o rio, e pelo costume que tenho de considerar um exílio minha estada no cerrado - uma cruel meia verdade.
acabei não escrevendo, sorte minha. o que haveria de novo em falar desse poema? basta procurar na internet e verão como o assunto já foi - e ainda é - estudado, analisado, virado e revirado. sim, mistura exemplarmente saudade e nacionalismo. sim, dezenas de escritores nos últimos cento e cinquenta anos revisitaram a canção, de casimiro de abreu a oswald de andrade, de murilo mendes a torquato neto. carlos drummond, fagner. e, claro, tom jobim e chico, com sua sabiá - talvez os que melhor souberam reinventar o poema original.
alguns dias atrás, soube do recente lançamento do dvd "terra estrangeira", do walter salles e da daniela thomas, em comemoração dos dez anos do filme. e a velha canção do exílio voltou a minha mente. melhor filme brasileiro dos últimos dez anos - junto com lavoura arcaica - o filme do waltinho e da daniela também trata de exílio. mas vai além do poema de dias.
a saudade da terra natal - típica da obra de dias - está evidente na personagem de laura cardoso, mãe de paco - fernando alves pinto -, o protagonista do filme. morando em são paulo há anos, ela se sente estrangeira em nossas terras. vive apenas pelo sonho de um dia retornar à cidade onde nasceu, na espanha. briga com o filho por isso, "você não pode dizer esqueça san sebastian, como se fosse um capricho meu. é san sebastian que não me larga, paco." sua obsessão em voltar é tanta que morre quando desobre que nunca poderá concretizar seus planos. mas o filme de waltinho e daniela atravessa o exílio romântico e segue adiante.
com a morte da mãe - pátria mãe -, sua única família, seu lar, paco sente-se exilado. um exílio para além do lugar, desterrado na própria terra. com paco, há uma inversão da idéia romântica do exílio, na qual o poeta vive melancolicamente a sonhar com a terra natal. Aqui o sentimento de exilado se dá em sua própria casa. a situação de paco lembra um poema de quintana, chamado "uma canção":
Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.
(...)
Mas onde a palavra "onde"?
Terra ingrata, ingrato filho,
Sob os céus da minha terra
Eu canto a Canção do Exílio!

a sensação de não-pertencimento de paco o leva a uma atitude inusitada: adotar a cidade da mãe como seu porto seguro, como sua possível terra natal. paco une em san sebastian dois ideais: a pátria idílica, o saudoso lar - tendo saudades do que nunca viu -; e a terra prometida, sua pasárgada, onde será amigo do rei e todos os problemas desaparecerão.
seja por querer fugir do não-lugar onde vive, seja por tentar buscar algum reconforto nas lembranças emprestadas da mãe, paco inicia sua jornada. nela, conhece alex - fernanda torres. a busca atormentada de paco por san sebastian se contrapõe ao realismo cínico da moça. ocupada demais em sobreviver à dura realidade do exílio, alex não sonha. mas sofre. sofre com a incapacidade de ser aceita em portugal, seja pelo sotaque, seja pelo simples preconceito de ser brasileira. confessa logo no início do filme, "quanto mais tempo passa, mais me sinto estrangeira".
em um momento do filme, porém, alex percebe que não tem para onde voltar. vendera seu passaporte, seu marido está morto. para onde ir? diz ela "queria tanto voltar para casa". paco pergunta onde é sua casa. "não sei. aqui é que não é." alex acaba por se apaixonar por paco, e por seu sonho de uma pasárgada-pátria. juntos, talvez, possam construir sua própria casa.
waltinho e daniela brincam cruelmente com o destino da personagem mais humana do filme, a única que não consegue libertar-se da realidade que a circunda. alex não vive o desenraizamento despreocupado, irresponsável e onírico de seu marido - miguel, vivido por alexandre borges -, ou o sofrimento para além do humano da mãe de paco, ou mesmo o heroísmo trágico e melancólico de paco. entre os três arquétipos - o bufão, a mãe e seu eterno sofrimento, e o herói - alex acaba abraçando o último, seja por amor, seja por desespero. faz do amor desesperado por paco sua pátria.
a cena do navio encalhado na praia - que, segundo o próprio walter, deu origem ao filme - sintetiza a angústia do desterro, utilizando a medida certa de poesia e aridez. como voltar, como sair dessa praia deserta? da mesma forma, a sofrida canção final do filme, "vapor barato", nos lembra que devemos tomar aquele velho navio e partir, e insinua que talvez um dia voltemos, quem sabe, um dia.
náufragos em praia desconhecida, paco e alex se agarram à esperança de uma terra em que se sintam em casa. mas ela não virá. com paco moribundo em seu colo, dirigindo em uma estrada que leva nada a lugar nenhum, alex chora as últimas palavras do filme, num misto de promessa e desejo: "eu juro que um dia eu te levo pra casa, meu amor". coincidência ou não, gonçalves dias nunca tornou a ver sua pátria. vindo da europa, seu navio naufragou na costa brasileira. e a metáfora do navio encalhado ganha ainda mais força.
com "terra estrangeira", waltinho e daniela nos ensinam o que é exílio e seu sofrimento, e como podemos nos perder, mesmo em nossa própria terra. a dor de alex é a dor de saber que seu navio nunca virá. por mais que ela jure tragicamente ao seu amor que um dia o levará pra casa. a dor de saber que nunca voltaremos, pois não temos para onde voltar.

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epigramas a la bumper sticker - cinco

Elegia Urbana

Rádios. Tevês.
Gooooooooooooooooooooooolo!!!
(O domingo é um cachorro escondido debaixo da cama)

(Mario Quintana, Apontamentos de História Sobrenatural)

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sexta-feira, dezembro 16, 2005

rio - porque amanhã é logo ali, waly

jards macalé e glauber rocha escreveram um dia uma pequena ode-samba-prece ao rio,

idolatrada mãe a quem recorro
toda vez ameaçado pranto
paraíso são sebastião
rei de janeiro

brincando com as palavras dos dois, a melodia dissimulando divertidamente meu exílio, lembro que, com as festas de fim de ano, pouso no rio em alguns dias, e posso voltar àquela algaravia de matas, malandros, bundas, engarrafamentos e tudo o que me faz falta no cerrado. mas desde 2003, essa algaravia perdeu um pouco da força, sem waly salomão. lunático navegador, baco e beca, ora político ora poeta, misturando palavra e perdigoto, waly traduzia como ninguém aquela cidade. pensando nele, e na praia que me espera, me veio algo assim:
essa é pro waly
Evoé domingo ardido. Basta um sol, um fio de areia e 40 graus a profanar-nos todos. Benditos desavergonhados que me entorpecem vestidos de nus com vestígios de trapos, benditos trapos. Benditos soluços de mar que me entortam com tropeços de passos soçobrados entre enchentes e vazantes, benditos passos. Imerso à multidão tonitroante, eu nem me ligo, eu queimo e ardo, eu tomo picolé. Evoé Dragão Chinês. Evoé Maria Tereza Weiss. Rogo pelo fruto e pelo ventre (benditos ventres) e agradeço ao Redentor pelo Dionisíaco. Evoé domingo ardido. Basta um sol e um fio de areia para seguir descalço. Do alvorecer do alvoroçar de Copa, ao sol frisante no fim do horizonte do Arpoador.

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quarta-feira, dezembro 14, 2005

epigramas a la bumper sticker - quatro

eu ontem tive a impressão que deus quis falar comigo
não lhe dei ouvidos
quem sou eu pra falar com deus?
ele que cuide dos seus assuntos
eu cuido dos meus

(Paulo Leminski, Distraídos Venceremos)

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terça-feira, dezembro 13, 2005

mea culpa - sobre o blog e suas contradições

meus caros,
sei que o blog se chama pequenas coisas, infimidades e outras menores.
curiosamente, os posts têm ficado sistematicamente maiores, quilométricos. não é de propósito. um dia, quem sabe, eu descubro que menos é mais e consigo alcançar a tão almejada infimidade. até lá, peço desculpas.

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impressões impressionantes - o brilho e o feitiço

dia desses, conversei com um amigo sobre relacionamentos. falávamos de como é difícil aproveitar o momento presente, sobre como costumamos racionalizar tudo, e como tentamos antecipar o que pode acontecer e sofremos uma angústia eterna com isso. o papo me levou a um livro do andre comte-sponville, a felicidade, desesperadamente. a idéia básica do livro - que não li - é a de que devemos viver sem esperança, ou seja, sem esperar. viver o agora, sempre. a felicidade viria em aproveitar o presente, sem tergiversar, sem se angustiar sobre o que pode ou deve acontecer.
eu sei, não é nada fácil isso. papo interessante, mas, colocá-lo em prática, bem, são outros dobrões. mas o livro do sponville e o papo com o julio me lembraram de dois filminhos que tratam disso. um deles é uma comédia romântica despretencionsa chamada o feitiço do tempo - groundhog day. nela, phil connors (bill murray, em talvez sua melhor atuação até o recente encontros e desencontros), apresentador de previsão de tempo, se vê preso no mesmo dia. phil/bill acorda no mesmo dia, incessantemente, em uma cidadezinha onde foi gravar uma matéria para seu jornal. cada dia, bill acorda no mesmo lugar, presencia os mesmo acontecimentos. e passa a viver essa prisão no tempo e no espaço, sem perspectiva de que um dia possa libertar-se. tenta tirar proveito dela, provando todas as delícias e imoralidades possíveis. até elas cansarem. tenta se matar - kill phil, kill bill! -, mas continua acordando no mesmo dia, sempre.
a prisão eterna de bill remete a duas outras prisões conhecidas. uma é a prisão da vida mencionada no budismo - ou no hinduísmo, algo assim. o ser humano estaria condenado ao eterno ciclo do nascimento, vida e morte, revivido incansavelmente nas reincarnações. o eterno sofrimento do eterno retorno (não confundir com o eterno retorno de nietzsche, redentor), até, um dia, quem sabe, a ascensão e o nirvana. mas a prisão de bill é pior, pois ele tem memória. ele se lembra dos dias anteriores. e não há pior prisão que a prisão da memória do mesmo, num cruel e inesgotável dejá vu. o mesmo, sempre e sempre. e essa prisão lembra o mito de sísifo, condenado a rolar até o fim dos dias uma pedra para o alto de uma colina, quando essa pedra deslizaria morro abaixo e ele seria obrigado a rolá-la novamente, num moto contínuo semelhante a vida de bill no filme.
o que isso tem a ver com o livro do sponville? pensei cá com meus botões: ora, sísifo era o homem mais inteligente entre os homens - sisifo, sofos, sofia, saber. não poderia ser, então, a condenação dos deuses algo além de uma condenação, talvez uma provação, um teste? uma prova, para saber se o mais sábio dos homens poderia sobreviver, e viver, num mundo restrito a uma suposta repetição? se sísifo era o mais sábio entre os sábios, talvez ele fosse capaz disso, de rolar a pedra, sempre, como se fosse a primeira vez, de aprender, de arrancar o novo, de algo que pareceria ser uma simples repetição. e talvez, dessa forma, vivendo desesperadamente, sem pensar na possibilidade do que viria em seguida, acabaria por se livrar da prisão.
bill/phil, o morto vivo do filme, consegue. ao dar-se conta de que cada mesmo dia poderia não ser tão mesmo assim, ao resolver aprender, viver algo novo a cada dia - tocar um instrumento, fazer uma boa ação, conhecer novas pessoas, amar -, bill acaba por se livrar de sua prisão. o filme termina - para os que não viram, não leiam - com finalmente o dia seguinte surgindo. bill amanhece um novo dia. mas não seria necessário, pois ele já tinha alcançado isso. vivendo desesperadamente. sem almejar o amanhã.
e o que isso tudo tem a ver com relacionamentos? bom, aí entramos no outro filme, brilho eterno de uma mente sem lembranças - eternal sunshine of the spotless mind. nesse filme, joel - jim carey, mostrando por que é um dos melhores atores de sua geração (vai ter gente querendo me matar aqui, :-) ) - resolve apagar todas as lembranças de sua antiga namorada. vai a uma clínica, que lhe garante isso: apagar as lembranças relacionadas a uma pessoa. sua ex, clementine, já havia feito a mesma coisa - kate winslet, maravilhosa. o filme mostra o sofrimento e a dor de ter suas lembranças apagadas, sejam elas boas ou ruins. mas o tiro sai pela culatra, pois os dois se encontram, sem memória alguma um do outro, e se apaixonam de novo.
curiosamente, no final do filme - mais uma vez , não leiam -, os dois se deparam com a crueldade da velha moira, o destino: para apagar a memória, a clínica exige que se faça um relato de tudo o que desagradava na outra pessoa. características, manias, jeitos. num momento do filme, cada um ouve o relato feito pelo outro, enumenrando tudo o que mais odiava e achava insuportável no antigo companheiro. kate resolve partir da casa de joel, alegando que eles sabiam como tudo aquilo iria terminar, em alguns anos ele a acharia insuportável e vice-versa. e então surge a frase mais linda do filme, que pode redimir o sofrimento de todos. joel vira-se e diz: I don't care. eu não me importo. ele sabe que isso pode acontecer, mas a felicidade que sente no momento vale o risco. o que vale é o agora, e agora joel se sente realizado com clementine.
o eterno retorno no relacionamento entre joel e clementine se assemelha ao eterno retorno de bill. podemos viver presos a uma realidade modorrenta, que nos aterroriza com a possibilidade de se repetir sistematicamente. podemos sofrer por antecipação. ou podemos burlar esse jogo e viver o eterno retorno nietzschiano, em que o deslumbre pela vida nos joga um degrau acima, reinventando o mesmo, trazendo dentro da repetição incessante da vida a simples felicidade por estar vivendo, sem expectativas - como prega o livro de sponville. joel e bill tentam livrar-se da maldição de sísifo apostando no agora, no presente, e na felicidade, desesperadamente. e conseguem.

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domingo, dezembro 11, 2005

epigramas a la bumper sticker - três

infância (2)

Eu matei minha saudade mas depois
veio outra

(Cacaso, Mar de mineiro)

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sábado, dezembro 10, 2005

todos os eus e mais alguns - parte III


10 anos sem 80

Pois em verdade eu já fui rapaz, já fui donzela,
fui arbusto, pássaro, ardente peixe do mar.

(Empédocles, IX:569)

o epigrama do empédocles é lindo, mas não tem nada a ver com o assunto do post - uma boa maneira de começar com um ar mais respeitável.
na verdade, ele me levou a lembrar desse blogo, veículo espúrio de todos meus eus. e foi quando dei por mim e percebi. há 10 anos morreu a 80g, minha primeira e única revista.

como mann explicou no primeiro editorial, éramos três garotos da faculdade de comunicação - depois quatro, com a entrada do juliano. a vida lá tinha suas coisas boas: a primavera, os bailezinhos, as borboletas, o sapato engraxado, os chocolates godiva, os aguapés do laguinho. um belo dia tudo mudou. o gato do villela caiu do sétimo andar e desssa vez não sobreviveu, eu cortei o lóbulo da orelha protegendo a gisele do seu cafetão na prado jr., e saint exupery deixou de ser engraçado para o mann. então descobrimos que nada do que o mundo dizia fazia sentido. e bem, foi uma boa desculpa para montar uma revista literária. é bem verdade que de revista não tinha nada, não era nada mais que um pernicioso instrumento para divulgarmos todo e qualquer tipo de texto, odes eróticas, contos pérfidos, poemas insalubérrimos, receitas de space cake e equações de cálculo infinitesimal. mas foi uma forma de fazer as desrazões do mundo passarem mais fagueiras. era 1994.

durou quatro números, o quarto aliás não foi distribuído, pois percebemos que a revista estava corrompida: fora editada em peige meiquer. terrível, terrível, afinal, até então era feita da melhor maneira possível, com os originais - algumas páginas feitas com papel mimeografado, outras com uma velha olivetti da mãe do villela, e mesmo algumas com uma velha impressora matricial - sendo colados numa mistura de cola branca e natunóbilis, que acabava entornando por cima de tudo, mas curiosamente grudava que era uma beleza. ateamos fogo nas duas caixas com todos os exemplares do último número e uma coleção do tailor caldwell do mann - que convencemos a se livrar - em um ritual waimiri atroari que o juliano sabia decor, a vodka natasha substituindo com admirável compostura a poção xamânica, e letras do lou reed e uivos do villela se mesclando com os estalos de língua e verborragias védicas do mann. as chamas subiam altas enquanto dançavamos ao redor da cremação, todos nus, até os soldados da praia do forte imbuí, em niterói - lugar escolhido para a cerimônia -, atirarem para o alto e voltarmos a nado para o rio de janeiro. acabamos pegando uma carona numa traineira que apontava para copacabana e lá desembarcamos, vestidos de nu, na frente do copacabana palace, e fomos tomar chá no terraço para curar a ressaca. não sei se foi exatamente assim, mas é assim que gosto de me lembrar. era 1995. foram bons tempos.

cada um dos quatro números foi dedicado a alguns de nossos heróis. o primeiro para a eterna lídia vance (que deus cure as suas cáries); para o pai de todos os porres, o gênio henry chinaski; e para o brilhante cafezeiro mad dog. outros foram homenageados, sallinger, fante, lirio mario da costa, não me lembro de todos. como era costume, dedico esse post a meus cúmplices oliver mann, gustavo villela e juliano borges. que krishna tenha piedade de nós e nossas patifarias.

a revista foi-se, assim como as últimas garrafas de tatu – carinhoso apelido, talvez pela sensação de estar embaixo da terra ao acordar –, de uma caixa que um de nós tinha comprado ao ganhar na raspadinha – gastamos o prêmio todo em putas, tatus e kinder ovo.

tempos depois, resolvi mudar de ares, deixar o rio e seus engarrafamentos centopéicos. um dia, peguei meu uninho mille, coloquei minha enciclopédia barsa, meu atari, as obras completas do machado de assis e a minha coleção do zéfiro dentro do porta malas, e cruzei o cerrado em direção a ávalon. Mas, bem, essa é outra estória.

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sexta-feira, dezembro 09, 2005

passarando - porque hoje é sexta?

um dos poemas mais conhecidos do Quintana é o Poeminha do Contra, que diz assim:

Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

um dia li esse poema e lembrei daquela cantiga de roda, que dizia, "sabiá lá na gaiola, fez um buraquinho, voou voou voou". pensei nos dois, e me veio algo assim:

Para Mario Quintana
Passarinho na gaiola fez um buraquinho, voou, voou. Vou eu também. Sozinho? (O que me atravanca é a gaiola ou a escuridão desse caminho?) Entre grades, gaviões e passarinhos, assovio um horizonte bem imaginário e vou. Passarando. Tendo a solidão de sempre meu cativo ninho.

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todos os eus e mais alguns - parte II

Dia desses estava conversando com um amigo sobre tragédias gregas. Tive meu primeiro contato com elas na faculdade e fiquei maravilhado. Surpreendentemente, ele desdenhou. Disse que achava tudo aquilo bobo. Simples assim, bobo. Emburrei. Citei logo Édipo Rei, blockbuster das tragédias, que chegou a ser encenada por Felipe Camargo e Vera Fisher nas nossas noites globais tempos atrás. Disse ele, tragédia com mãe já basta a minha. Eu repliquei, sério, tentando achar o tom certo pra convencê-lo: mas é uma das mais belas putarias que já foi escrita.
- Putaria por putaria, prefiro o Zéfiro. Amor incestuoso não combina com tragédia. Não é pano pra manga, entende?
- Claro que é, tá louco rapaz? É contradição entre amor materno e sexo.
- Sei não. Sentimento materno é sentimento de culpa. Sabe a síndrome de Helsinki?
- Estocolmo...
- Uma porra dessas geladas, a síndrome do seqüestrador e seqüestrado, em que o seqüestrado passa a defender o seqüestrador. A mãe perde nove meses de sua vida com náuseas, dores, deformações físicas, descontrole hormonal e fisiológico. E em troca ama aquilo que fez tudo isso a ela. Relação sadomasô das mais profundas. E relação sadomasô é um pulo prum coitozinho.
- Mas e o enredo. Pelo menos é um bom noir às avessas. Todos sabem o fim, só não sabem o que os personagens vão fazer pra chegar lá. E o jogo de charadas é a mãe de todas as novelas. E o crime principal, o clímax, vai ser cometido, ninguém pode fazer nada, só botar a culpa na Moira, a coitadinha.
- É... mesmo assim, nesse caso, prefiro o Eurípedes. O Sófocles é meio pernóstico, entende, fica fazendo um blablabla metafísico que me irrita.
E assim continuamos, por um bom tempo. Um tentando desqualificar o argumento do outro. Até que parei e pensei como a estória de Édipo e Jocasta era realmente mirabolante. E, por que não, poderia ter sido tudo bem diferente.
Encontravam-se quatro típicos cidadãos da sociedade atheniense numa das várias ante-salas da Acrópole-in destinadas ao divertimento sexual dos passantes. Tinham acabado de se conhecer numa festa à fantasia, todos devidamente mascarados. Com a ajuda do vinho, em pouco tempo o gelo estava quebrado. Faziam dois belos casais: um dominó e uma gata, um urso e uma colombina - é um mistério a fantasia da colombina; alguns dizem que foi conseguida por muambeiros fenícios.
Quando começam a se despir, o inesperado acontece: o dominó é Édipo, a colombina, Jocasta, Tirésias é a gata, e Laio, o urso. Pandemônio. Primeiro porque Laio, pouco depois de Édipo nascer, dissera a Jocasta que iria na esquina comprar cigarros e nunca mais dera notícias. Tirésias, o velho cego, era apaixonado por Laio e, não querendo ver o futuro corno sofrer, contara o Destino pouco nobre que lhe era reservado. Laio resolvera viver a vida, fugindo da casa amaldiçoada. Édipo e Jocasta, sabendo o que o Destino havia traçado para os dois, resolveram aceitá-lo e desde então formavam um belo casal. O que não se esperava era a volta de Laio depois de tanto tempo.
Jocasta é a primeira a se despir.
Laio -- Minha querida esposa! Por Afrodite, como estás bela!
Édipo -- Sinto estragar tua alegria, peludo atheniense, mas a colombina já tem dono – (Édipo tira sua máscara) - Que fazes aqui, mulher?
(Jocasta fica catatônica. Laio, porém, tira a máscara e se apresenta.)
Laio -- Filho meu, não sabes quem eu sou? Laio teu pai...
Édipo -- Tu tens coragem de se desmascarar, pilantra desalmado. Não bastasse ter fugido de casa há vinte anos, agora voltas como se o tempo não tivesse passado. Cão velho, Cérbero pulguento e desdentado. Descarado!
Laio -- Respeito, sou teu pai!
(Tirésias, que até então se deliciava com a discussão, enfim se pronuncia, tirando a máscara.)
Tirésias -- Acalmem os nervos, por Tonante. Tu, filho de Laio, estás muito alterado.
Édipo -- Silêncio, velho baitola. Falo com o patife que se diz meu pai e com essa pérfida, medéia prestes a me matar de desgosto. O que fazes aqui, ó górgona, sendo bolinada por este urso velho e babão! Tu não prestas...
Laio -- Olhas o modo que falas com tua mãe...
Édipo -- Não te intrometas, odiado pai, que eu te como de porrada.
Tirésias, saliente -- Falando em comer...
Laio -- A gata velha e cega tem razão. Viemos aqui para quê, afinal?
Édipo -- Tu que não tentes nada com minha mãe, irmão torto de Polifemo. E eu não traço esta caveira velha, mais feia que o próprio Caronte, nem que estivesse no inferno.
Tirésias, desanimando -- Como não?
Laio -- Como não? Por Eros, tu vais comer a gata velha, sim senhor!
Jocasta -- Olha bem, ele nem é tão velho assim, filho.
Tirésias, achegando-se -- É...
Édipo, furibundo -- Por Juno, é um complô! Até tu, Jocasta? Como podes? Aprendiz de Pandora! Estou desencantado! Vou embora deste pesadelo.
(Sai Édipo, em passos apressados e as mãos sobre o rosto.)
Laio -- Isso. Isca, isca! Aqui só tem lugar pra macho. Que fiz eu, ó Afrodite, para merecer um filho brocha!
(Quando Édipo sai, Laio imediatamente fecha e tranca a porta. Instantaneamente, Édipo vira-se.)
Édipo -- Espere lá. Minha mulher está aí dentro. Abra esta porta!
(Sem resposta.)
Édipo -- Por Hermes, abra esta porta (nada) - Por Hades, vou matá-lo, seu safado, ah, se vou! O Destino já traçou tua morte nas minhas mãos!
Laio, com delicadeza espartana -- O Destino pode traçar quem ele quiser, menos a tua mãe. Pois eu tenho a chave e ele não tem.
Édipo -- Kraken de aquário! Hidra sem cabeça! Minotauro mocho! Trapaçeiro! Covarde! Cuzão!
(Por mais pesados os xingamentos de Édipo, a porta permanece fechada. Desesperado, Édipo corre ao telephone mais próximo.)
Édipo -- Alô, polícia de Athenas, pelos deuses, acudam-me. Tem um sujeito comendo minha mãe!
Guardião -- Quem, ó desesperado cidadão?
Édipo -- Meu pai!

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epigramas a la bumper sticker - dois

Homo homini canis familiaris

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quinta-feira, dezembro 08, 2005

impressões impressionantes - zera a reza

meu primeiro contato com poesia concreta foi com caetano veloso. caetano não era bem algo que se ouvia lá em casa - meus pais preferiam chico. meu pai, violonista apaixonado por baden e paulo nogueira, decretava sua sentança: esse rapaz é desafinado, e, além do mais, rebola demais. para mim era o bastante, afinal, menino, confiava firmemente nos juízos paternos. desafinado e gay não pode. ok.

um belo dia, meu pai me chega em casa com um LP - sim, foi há algum tempo - do caetano, com uma capa despretensiosa, simples, apenas ele abraçado ao violão. passou alguns dias ouvindo atentamente ao disco. um dia, me chamou, colocou o disco pra tocar, e avisou, escute com atenção. esse rapaz aprendeu a tocar violão. e repetia a frase a cada nova canção, pensativo. vez por outra, dizia, e aprendeu a cantar também. assim caetano entrou em nossa casa. (hoje, não por acaso, meu pai é um ardoroso fã de caetano)

no disco, uma música me incomodava. pulsar. não era música. era um poema de augusto de campos musicado por caetano. nunca tinha ouvido algo parecido. as palavras seguiam em um ritmo pulsante, acompanhadas apenas por um sino e um bumbo, este tocado sempre que a letra O surgia em alguma palavra, o que materializava perfeitamente a redondice da letra, assim como seu vazio. o pulso da música, na verdade, nada mais fazia que evidenciar um vazio que entranhava tudo, a letra O, o sentido do poema, o eco incessante do bumbo invisível. o equilíbrio entre palavra e vazio, entre bumbo e sino, entre a voz de caetano e a ausência de música, tudo me fascinou. naquele dia, aprendi o que era poesia concreta.

o resto é estória. comecei a ler poesia concreta, décio pignatari, augusto e haroldo de campos, noigandres. comecei a ouvir caetano, e pinçar uma ou outra coisa diferente, concretismos do rapaz, diria meu pai. batmacumba, guá, asa, tudo tudo tudo, relance, julia/moreno.

percebi que o concretismo, com o tempo, se dissolvera em suas letras. estava lá, mas nada tão explícito quanto antes. uma coisa aqui outra ali mais explícita, como "as coisas" do arnaldo antunes, musicada no tropicália dois. coincidência ou não, o concretismo também foi ficando para trás em minha vida, os livros se escondendo atrás de outros na bagunça das estantes. sempre presente, não mais explícito, uma música do arnaldo antunes aqui, outra da adriana calcanhoto ali. como caetano, surgiam dissolvidos também em pequenas coisas minhas escritas, isomorfismos aqui, um jogo não discursivo ali, pitadas de experiências que augusto de campos chamaria de verbi-voco-visualidade, o que quer que seja isso.

dia desses, ouvi pela primeira vez noites do norte, lançado em 2000, se não me engano. e a primeira canção fez despencar uma parede de concreto no meio do chão de minha sala. e tudo voltou, como um agora e sempre, sem sequer me fazer sentir saudades, de tão presente.
caetano voltava a sua clara e firme concretude. bastava a primeira estrofe da música para ele anunciar que suas duras raízes ainda restavam lá, impassíveis.

caetano joga com o sentido, o som e a palavra, esfrega o semantema em nossos ouvidos, brinca de quebra-cabeça com sílabas, e cria. ao longo de toda a estrofe, as palavras se repetem, partidas ao meio, sílabas em uma lúdica dança das cadeiras, sem que em nenhum momento a música se perca, sem que ele esqueça seu propósito, o sentido final da canção. a junção perfeita do que pound chamou de melopéia - óbvia não apenas por ser uma canção, mas pela própria sonoridade das palavras - fanopéia - com a criação de nítidas imagens, como a embarcação sendo levada pelo vento - e logopéia - ao forçar nossos ouvidos a prestar atenção a tão poucas palavras, restaurando a força inicial de cada uma delas, e, ao mesmo tempo, construindo claramente, palavra por palavra, tijolo sobre tijolo, a idéia da canção.

com uma idéia simples e direta, instaura o novo, e nos mostra como a poesia concreta ainda vive.

zera a reza - caetano veloso

Vela leva a seta tesa
Rema na maré
Rima mira a terça certa
E zera a reza

Zera a reza, meu amor
Canta o pagode do nosso viver
Que a gente pode entre dor e prazer
Pagar pra ver o que pode
E o que não pode ser
A pureza desse amor
Espalha espelhos pelo carnaval
E cada cara e corpo é desigual
Sabe o que é bom e o que é mau
Chão é céu
E é seu e meu
E eu sou quem não morre nunca

Vela leva a seta tesa
Rema na maré
Rima mira a terça certa
E zera a reza

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epigramas a la bumper sticker - um

auto-epitáfio n 2

para quem pediu sempre tão pouco
o nada é positivamente um exagero

(josé paulo paes, socráticas)

não poderia começar essa seqüência de tópicos com algo meu. aos poucos, meus epigramas vão gotejando por aqui, aos poucos

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