quinta-feira, janeiro 26, 2006

impressões impressionantes - peter e wendy


semana passada li que peter pan, o livro de j. m. barrie, terá uma continuação. fiquei chocado. como assim, continuação? mas a notícia me lembrou de como suas estórias povoavam minha mente. quando pequeno queria ser peter e voar pelos céus a procura de aventuras. certo, não tão pequeno assim - na verdade, até semana passada. saudoso da estória, procurei o livro na internet e o encontrei, graças ao projeto gutenberg.
é um livro triste, que mostra como nos adequamos às exigências do mundo, e, com o tempo, deixamos de lado a alegria. para barrie, precisamos escolher: ou vivemos, ou nos divertimos.
o início do livro mostra que a menina wendy, personagem principal da estória, já aceitou seu trágico futuro. crescer, estudar, casar, cuidar dos filhos. mas, quando dorme, ainda sonha com aventuras e brincadeiras. habitando esse mundo onírico, vive peter pan. peter aparece na vida de wendy para mostrá-la o que ela estará abdicando se aceitar seu papel passivamente. ele a leva para a terra do nunca, e lá vivem inúmeras aventuras.
o convite de pan é sedutor. afinal, toda criança desconfia do futuro que seus pais lhe reservam. o futuro dos adultos. por quê? porque os adultos não sabem se divertir. senão vejamos.
vamos a escola, obrigados por nossos pais, porque é bom, segundo o juízo deles. mas principalmente para nos preparamos para o colegial. no colegial, nos preparamos para a faculdade. na faculdade, nos preparamos para o mundo. chegando ao mundo, conseguindo um trabalho, começamos uma carreira. nos esforçamos para subir na carreira, atingir novos postos. chegamos ao topo da carreira. mas com um sentimento de que fomos enganados. porque nunca nos ensinaram nada além de procurar algo acima.
durante esse processo, aprendemos que a vida é dividida entre trabalho e diversão. trabalho é o que é tão chato e abominável que você tem que ser pago para fazer. o objetivo disso é ganhar dinheiro. e, assim, comprar o seu divertimento. mas, na maioria das vezes, dinheiro não basta. pois prazer depende não de riqueza, mas de criatividade, vontade, dedicação. barcos, por exemplo. comprar um barco não traz necessariamente prazer. pois aproveitar um barco requer disciplina: aprender a velejar. toco violão. me divirto com isso, mas precisei de anos para aprender a tocá-lo. por isso a vida adulta parece, para a criança, um embuste. não existe um prêmio ao final daquele processo de galgar etapas e juntar dinheiro. por isso a promessa de diversão eterna de peter é tão tentadora.
voltando a peter. ele leva wendy para a terra do nunca por um motivo importante. contar estórias. por que pan precisaria tanto de alguém para contar estórias? pan não tem memória. peter não lembra sequer das aventuras que ele mesmo viveu. o livro deixa claro em diversas passagens, e talvez a mais dura seja quando ele mata um pirata e wendy, triste com a morte, pergunta como pan agüentaria esse fardo. ele responde, eu me esqueço. eu não lembro quantos já matei. simplesmente esqueço.
pan não tem passado. da mesma forma, não tem futuro. vive o presente, eternamente, como uma grande aventura inconseqüente. sua vida não muda, são sempre as mesmas batalhas com piratas, as mesmas diversões com sereias e fadas. como lamentar a morte de um inimigo, ou chorar a morte de um amigo, sem memória? e como cuidar? como amar? por isso pan pede que wendy vá a terra do nunca. além de ser sua memória viva, ela cuidaria e amaria a todos.
wendy se apaixona por pan. ele não sabe o que isso significa. não existem outros na vida de pan - como existiriam, como lembrar deles? por isso a palavra que mais surge ao longo do livro, ao descrever pan, é cocky. convencido. não por ser mau ou egoísta, mas porque simplesmente os outros não são necessários, e nem mesmo possíveis, em sua vida.
barrie não escolheu seu nome por acaso. pã é o deus dos bosques, divertia-se caçando e tocando flauta para as fadas. seu nome vem do radical grego pan, que significa tudo. pã era o símbolo do universo e a personificação da natureza. mas a natureza não se lembra. não tem memória. a natureza não ama, não é humilde ou justa, nem fiel ou sincera.
peter é como a natureza, e, como ela, não conhece o tempo. não morre, nem vive. por isso o menino pan não envelhece. não é verdade que ele não queira crescer nem possa crescer, ele simplesmente não cresce. numa cena comovente do livro, pan, achando que seu fim está próximo, declara: que imensa e terrível aventura seria morrer. no fundo, é um lamento. um lamento do menino-deus que não sabia morrer.
wendy percebe que aquela não-vida na terra do nunca não a satisfará. lembra dos pais. tem saudades daqueles que a amam. peter não a ama. como ficar? para ela, diversão apenas não basta. wendy volta ao mundo real.
as adaptações costumam omitir o final do livro. nele, wendy cresce, casa, tem uma filha. ao longo de sua vida, esquece como voar. pan a visita e fica horrorizado com sua velhice, e lamenta o fato de ter esquecido como se voa. por outro lado, wendy se choca ao descobrir que pan não lembrava de nada do que passaram juntos.
a única lição que pan pode ensinar a wendy é aprender a voar. a única lição que wendy pode ensinar a pan é aprender a lembrar. nenhum dos dois tem sucesso. por isso o livro é tão triste, por isso há um pessimismo em Barrie ao afirmar que não podemos viver e nos divertir. precisamos escolher.
pode parecer piegas, mas não acho que precisamos fazer essa escolha. porque não somos pan, e nossa diversão e nossas alegrias jamais serão inconseqüentes. porque não somos deuses, e, felizmente, lembramos. e, por isso, podemos amar – talvez a maior alegria de todas. basta que não percamos aquela vontade infantil de aproveitar cada segundo, de agarrar o mundo e fazer dele nossa terra do nunca. com vontade e talvez um pouco de criatividade e dedicação.
não quero mais ser pan. quero lembrar e amar. bom, ainda quero voar. quem sabe.

terça-feira, janeiro 24, 2006

epigramas a la bumper sticker - dez

quem chega tarde
deve andar devagar
andar como quem parte
para nenhum lugar

vida que me venta
sina que me brisa
só te inventa
quem te precisa

(paulo leminski, la vie en close)

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sexta-feira, janeiro 20, 2006

todos os eus e mais alguns - parte VI

fotos por gustavo weber
- o senhor lembra de mim?
virei o rosto e examinei o garçom. baixo, aparentando mais idade que tinha. uns 20, 30, talvez. ele sorria, meio sem jeito. fiquei alguns segundos em silêncio. antes que pudesse esboçar uma palavra, emendou.
- sou o naldinho. da foto. lembra?
dez anos. há dez anos fotografei naldinho na praia de copacabana. fazia um ensaio sobre a praia, era meu último dia. passava das quatro da tarde. um sol inclemente nos afogava numa luz pesada e pastosa, e a maresia entranhava corpo, lente e espírito. já havia terminado o trabalho. perto do hotel meridien, um grupo de meninos de rua jazia esparramado na areia, junto ao mar. me aproximei, sentei perto deles, e, como para justificar minha pausa na caminhada, comecei a fuxicar minha mochila. não parecia turista, nem banhista. de tênis velho, calças jeans, camiseta branca surrada, barba por fazer e uma mochila militar a tira colo, estava tão fora de contexto que eles mal me notaram. menos naldinho. ele se levantou e zigue-zagueou até mim. estava drogado. seus olhos não focavam em mim, permaneciam vidrados. mesmo assim, tentou se agachar, bambeou e caiu sentado ao meu lado. perguntou o que tinha na mochila. equipamento fotográfico, sou fotógrafo, disse eu, pensando se devia me arrepender ou não de confessar que meu precioso material estava todo lá. ele abriu um imenso sorriso, jogou a cabeça pra trás e gargalhou. levantou-se rápido e tentou correr até seus amigos, tropeçando nas próprias pernas. virou-se pra mim e gritou, vem, vem tirar foto da gente. tirei minha cannon da mochila, levantei e rumei até eles.
- naldinho!
era um bar em botafogo, passava das duas da manhã. apenas minha mesa continuava cheia e exigia o trabalho dos garçons.
- naldinho!
levantei-me e o abracei, e ele, constrangido, se afastou um pouco e estendeu a mão. seu sorriso desbotara. não poderia mais sorrir como naquele dia, nunca mais. seu rosto agora era marcado por rugas, cicatrizes, dor, perdera dentes, perdera o brilho que se podia notar mesmo naquele dia, drogado de tanta cola de sapateiro. forçava um sorriso triste. seus olhos não mais vidravam no infinito. mas pesavam, pesavam muito, como se o peso do mundo estivesse em suas pálpebras.
- como... onde estão os outros?
tiago, joão e caio permaneciam esparramados no chão, anestesiados demais para qualquer reação. latas de cerveja e refrigerante em punho, mais meia dúzia ao redor. erguiam a cabeça num esforço sobrenatural e cheiravam sofregamente a cola que enchia as latas, antes de desabarem novamente, enterrando a cabeça na areia. naldinho, capaz de alguma iniciativa, tentava animá-los, fazia piruetas, se jogava no meio deles, atirava latas vazias e areia para o ar e ria-se.
- morreram.
sorriu um sorriso triste e sereno e foi fechar nossa conta no balcão.
depois das fotos, naldinho sentou-se ao meu lado e perguntou em que jornal sairiam.
- é pro globo?
- não. vou fazer uma exposição. elas vão virar quadros, bem grandes. assim, desse tamanho.
ele arregalou os olhos e tentou se concentrar nas minhas mãos, imaginando o tamanho da posteridade.
- tudo isso? vou ser famoso! vou ser famoso!
- não sei naldinho. não sei.
- é difícil isso?, apontou pra minha máquina.
- a gente aprende.
- sabe, quero ser fotografo. ter fotos no globo. muitas fotos. assim, desse tamanho! e riu-se com os braços estendidos, deitado de costas pra areia.
permanecemos lá por um tempo, eu mostrando a máquina a naldinho, explicando como funcionava, abertura, tempo de exposição, luz, ele tentava se concentrar, pronunciava com a língua travada as novas e complicadas palavras - obturador, microssegundos - e ria.
- e a fotografia, naldinho?
- reginaldo, chefe, agora é reginaldo. olhou para o chão, meio sem jeito.
- muito caro né. essa coisa é cara. sabe, não esqueci não, até pensei, mas essas máquinas. tão caras né. um dia eu compro. eu sei que compro. permaneceu olhando para o chão, enfim ergueu a cabeça, olhou para o cristo redentor e virou-se pra mim.
- olha lá. olha os braços dele. ainda vou fazer fotos daquele tamanho. olha. olha os braços dele. assim. sorriu e por um microssegundo me lembrou o naldinho que conheci.

- o reginaldo está aí? voltei no dia seguinte no bar de botafogo. debaixo do braço, minha velha cannon embrulhada pra presente.
- não veio.
- ...
- tiroteio. ele mora ali, no dona marta. teve tiroteio ontem, a policia tentou subir. uma dúzia morreu.
- pode entregar isso aqui pra ele?
o dono do bar me olhou desconfiado, olhou para o embrulho e cruzou os braços.
- olha meu filho. essa garotada vem e vai. semana passada mesmo sumiu um garçom. o reginaldo não veio hoje, já coloquei outro menino no lugar. sinto muito. virou-se, pegou um pano velho e fingiu limpar o balcão.
olhei para o embrulho, acendi um cigarro e saí. antes de entrar no carro olhei pro cristo. permanecia lá, sereno, de braços estendidos, medindo as fotos de naldinho.

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terça-feira, janeiro 17, 2006

epigramas a la bumper sticker - nove

foto por gustavo weber
cadência

se o meu vagar tem seu valor
para que a pressa meu amor

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sexta-feira, janeiro 13, 2006

impressões impressionantes - a solidão e o amor de frankie e johnny


acordei no meio da noite. fiz um chá, acendi um cigarro. e, sentado na sala, vestindo uma camiseta velha e puída, de caneca em punho, cotovelos sobre a mesa, fitei meu reflexo na janela fechada e percebi. lá estava eu, num quadro de hopper.
edward hopper nos ensinou o que é solidão. seus quadros nos arremessam no vazio das grandes cidades, nos mostram , janela a dentro, a melancolia do quartos desabitados, a indiferença entre as pessoas, o isolamento que podemos criar, mesmo imersos na multidão. quem nunca se sentiu personagem de hopper? quem nunca teve medo de voltar para a casa, tarde da noite, para evitar o opressivo vazio que estaria nos aguardando, e preferiu antes entrar num bar, num café, e juntar-se a outros desconhecidos no balcão, que também apenas aguardavam, indefinidamente, esse sentimento passar?
no filme frankie e johnny, de 1991, al pacino (johnny) confessa: tenho vontade de me matar quando penso que sou a única pessoa no mundo, preso nesse corpo, que nada faz a não ser esbarrar em outros corpos pelas ruas, sem nunca se conectar. precisamos nos conectar. precisamos nos conectar. frankie e johnny trata dessa solidão. mas também fala de como podemos rompê-la.
frankie (michelle pfeiffer) é garçonete num restaurante barato de manhattan. vive ilhada do mundo, em segurança, acompanhada apenas por sua tristeza. ao visitar a mãe, no inicio do filme, admite: talvez eu não seja a pessoa mais feliz do mundo. frankie vive uma prisão. construiu essa prisão, temerosa de se magoar de novo, de ser obrigada a enfrentar seus próprios sentimentos. prefere um vídeo cassete. prefere assistir ao mundo pela televisão.
johnny acaba de sair da prisão. de fato. e talvez por saber que toda prisão é uma morte em vida, tem vontade. anseia viver. como frankie, também é solitário. como frankie, também tenta simular a vida, e paga uma prostituta para apenas dormir abraçado a ele, na esperança de enganar o vazio. mas sabe que isso não basta.
johnny é contratado como cozinheiro no restaurante de frankie. os dois se conhecem. se apaixonam. mas frankie decide que não vale a pena. pesa as possíveis conseqüências, teme ser magoada. prefere a monotonia de pizzas e vídeos. falta a ela vontade. mais que isso, falta coragem.
sponville diz, coragem não é um saber, mas uma decisão, um ato. depende, unicamente, de nós. por isso é preciso coragem para pensar, como é preciso para lutar, ou se apaixonar e investir em sua paixão, ou amar e lutar por seu amor, porque ninguém pode pensar em nosso lugar, nem lutar nem amar por nós, e porque a razão não basta, nem a verdade, nem mesmo o amor, se não há ação. porque é necessário ainda superar em si tudo o que estremece ou resiste, tudo o que preferiria uma ilusão tranqüilizadora ou uma mentira confortável. é preciso lutar contra a morte em vida. o medo nos paralisa. a coragem triunfa sobre o medo, pelo menos tenta triunfar, e já é corajoso tentar. que virtude, de outro modo? qual vida? qual felicidade?
johnny ama frankie. não esconde isso. age. é tão ansioso em viver esse amor que a assusta. ele explica: tenho medo que você fuja, se esconda naquele lugar em que se sente tão segura, por isso sou tão intenso. mas o amor de johnny não quer apenas a paixão idealizada dos romances. não quer apenas o sexo fugaz ou a tensão do que lhe falta, o mistério, o eros sôfrego de romeu ou tristão. johnny quer compartilhar a vida. mas teme que frankie não tenha coragem de fazer o mesmo. conectar.
ao final do filme, sentado na cama de frankie, ele declara: tudo o que quero está nesse quarto. ele se sente feliz pelo simples fato de existir, saboreando aquele momento com a mulher que ama. deseja aquilo que já tem, e sabe ser esta a verdadeira felicidade. sem anseios, sem arroubos, sem sonhos ou amores platônicos. apenas alegria e realização. alegria da realização. mas frankie também deve se entregar ao amor que sente e abraçar o instante. johnny pede para que frankie não tenha medo. ela desabafa: eu tenho medo. medo de ficar sozinha, medo de não ficar sozinha. medo do que sou, do que não sou, do que posso me tornar, do que nunca me tornarei. não quero ficar no meu trabalho para sempre, mas tenho medo de deixá-lo. e estou tão cansada. tão cansada de ter medo.
o medo de frankie é o medo de todos nós. que nos impede de tomar atitudes, de tentar realizar os sonhos, de abrir janelas e portas. o tão seguro medo que nos faz construir muralhas e nos aprisiona a uma vida sem vida, à monotonia, à paralisia.
frankie resolve arriscar. na última frase do filme, ela sorri para johnny e pergunta, no matter what? sua pergunta na verdade é uma afirmação. bastava a ela coragem para decidir. e ela decide pelo amor. não importa o que aconteça. no matter what. sentados à janela – e a janela solitária de hopper deixa de parecer tão solitária –, escovando os dentes, frankie e johnny assistem ao nascer de um novo dia, e sabem que aquilo basta. tudo o que precisam está naquele quarto. e claire de lune, de debussy, que passeia discretamente ao longo do filme como um véu de amor e melancolia, enfim toca no rádio do apartamento e toma o ambiente, as ruas, a cidade. e confirma com suas notas como a simplicidade do amor pode varrer a solidão. basta coragem.

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terça-feira, janeiro 10, 2006

epigramas a la bumper sticker - oito

foto por gustavo weber
"Me entender me é tormenta e alguns naufrágios"
(Túlio dos Santos Pinto)

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sexta-feira, janeiro 06, 2006

todos os eus e mais alguns - parte V

um belo dia, um colega me interrompeu no trabalho e perguntou por que razão eu era ateu. passei alguns longos segundos pensando se valia a pena enveredar por essa aventura perigosa de discutir religião com um crente. acabei não sendo muito prudente, e pensei, ok, vamos lá, pode ser divertido.
– pela própria palavra que você usou na pergunta: razão, meu caro, razão. não há muito bem uma razão pra isso, não? por isso inventaram uma outra palavra, fé. que por sinal, não é nada supimpa, senão não existiria a expressão boa-fé, certo? além do mais, não faz sentido vocês dizerem que deus nos criou a sua imagem e semelhança. preste atenção, acreditar nisso: semelhantes a deus! um dos sete pecados capitais não é a soberba? ora, acreditar em deus e que nós fomos feitos a sua imagem e semelhança seria então pecado de orgulho, simples assim. menos, menos; humildade, meu caro, humildade.
ele fez ouvidos moucos e insistiu. “mas por que você não acredita em deus?”
antes que ele iniciasse o monólogo sobre suas convicções, respondi.
- mas eu acredito. assim como acredito na bicicleta. o homem inventou a bicicleta, o espanador. nem por isso deixam existir, e de ter alguma utilidade, certo? bom, não vejo utilidade pro espanador, é verdade. mas, enfim, se é pra acreditar em algo, por que não acreditar em tudo logo? fadas, boitatá, elvis. e, bem, monoteísmo é meio cacetante, não? politeísmo é mais divertido, a gente pode contar mais estórias, são mais personagens, a criatividade corre solta.
ele me olhava, não sei se incrédulo ou se não entendia nada do que dizia. aproveitei e continuei o monólogo.
- bem, se bem que vocês católicos são politeístas, não? os santos são uma idéia genial. por isso são tão populares. cada um com uma característica, com uma mania, com dias, cores, hinos. o máximo. um olimpo sem sacanagem, o único demérito. e, afinal, esse negócio de santíssima trindade é meio um politeísmo escamoteado.
não agüentou e resolveu defender seu panteão.
- espere lá, a santíssima trindade representa uma só coisa: deus. veja bem,
seu veja bem me deixou curiosíssimo. resolvi prestar toda a atenção que um coroinha poderia dar.
- deus é o princípio de tudo. é tudo, e sabe tudo. sabe tanto que sabe que ele mesmo existe. só que esse ato de conhecer a si mesmo, esse autoconhecimento, é manifestado num outro eu para os homens. deus deu o nome disso de cristo, seu filho. e o amor que sente por ele é o espírito santo.
fiquei chocado. quer dizer que esse amor próprio é o espírito santo? céus. nunca tinha ouvido algo tão esquisofrênico e narcisista. chegaria a ser incestuoso, se o outro não fosse ele mesmo. deixei estar e perguntei algo menos chocante.
- pera lá. deus é o princípio. mas princípio é o que jaz, o fundamento, sub jectum. mas deus é verbo também, não é? não está escrito na bíblia que ele é verbo? ele é o sujeito e o verbo? humm. legal. isso sim é poesia concreta.
- deus é verbo sim. verbo é a ação. toda a ação vem de deus.
- deus é ação, ação é movimento. bom. isso é bom. como diz a música, o movimento é sexy. logo, deus é sexy. mas, veja bem – agora era a minha vez de tascar um veja bem – essa história de ser sujeito verbo e predicado, princípio meio e fim, insípido inodoro e incolor, larry curly e moe, todas essas trindades santíssimas já eram manjadas. o hinduísmo se baseia em três também: brahma, vishnu e shiva. criação, permanência e destruição. já estava tudo lá. se é pra acreditar em algo, vou pelo original, nada de cópia. e essa história de amor incondicional, olha, o budismo inventou isso também: amor, compaixão por tudo e por todos. e esse negócio maniqueísta, o bem vence o mal, espanta o temporal, o azul e o amarelo, tudo é muito belo, isso também é anterior ao cristianismo, vem do zoroastrismo. a única novidade de vocês é a culpa, que, venhamos e convenhamos, foi uma invençãozinha desgraçada, não? a gente não precisa de culpa: basta prudência, amor, fidelidade, honestidade, gratidão. e essas coisas já estavam por aí, funcionando muito bem sem culpa e sem deus. eu acho que...
não deixou eu terminar minhas especulações e foi embora. eu ri e voltei pro trabalho.

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segunda-feira, janeiro 02, 2006

impressões impressionantes - sol e sal com jack

natal no rio é natal com verão de 40 graus, e verão no rio me lembra praia.
o presente de natal mais importante de toda minha vida foi uma morey. para os que não sabem, morey boogie era uma marca de prancha com a qual se fazia bodyboarding – na época, esse palavrão nem existia. lembro de desembrulhar o presente e ficar maravilhado com aquele gigante amarelo, a mítica match 7.7, quase do meu tamanho. foi o natal de 1986. tinha onze anos.
a morey foi meu passaporte à vida adulta. até então, ia acompanhado à praia e pegava onda com uma prancha de isopor grande e desajeitada – mas que amava como se fosse minha namoradinha. meu pai levava a mim e a meu irmão mais velho até o fundo e nos empurrava sobre as primeiras ondinhas, e descíamos, triunfantes, montados em nossas pranchinhas de isopor.
com a morey, passei a entrar no mar sozinho. e, em alguns meses, a ir à praia sozinho. de súbito, tinha a meus pés um mundo salgado a ser explorado. meu. sem intermediações. a praia era minha. o mar era meu. graças à morey, meu salvo conduto, meu habeas corpus marítimo. com pés de pato, morey e camisa de lycra – ou até mesmo, vejam só, short john, sim, aquela roupa de neoprene – tinha a certeza de, mesmo aos onze anos, ser reconhecido e respeitado como um igual por surfistas, moreyboogistas e salva vidas. um par entre pares. sim, até os salva vidas passavam a me olhar diferente, com grande respeito – ou assim eu acreditava.
os verões de 86/87 e 87/88 foram antológicos. uma febre de morey invadira as praias do rio, em especial na barra. na frente do barramares umas meninas da minha idade, desajeitadas, corpo curtido de tanto sal e sol, cabelos descoloridos, dividiam as ondas comigo. eram minhas musas. com o tempo acabaram famosas. glenda kozlowski, as irmãs nogueira – a mariana e a isabela -, stephanie pettersen.
e por que falo tanto desses tempos. ora, praia era sinônimo de música. as competições de bodyboarding traziam o melhor da surf music para meus ouvidos pré-adolescentes. das gigantescas torres de som instaladas na praia ouvia pela primeira vez hoodoo gurus, midnight oil, oingo boingo, man at work - entremeados por clássicos como dick deale, beach boys, peter tosh e bob marley. eu sei, poucos sobreviveram ao crivo do tempo, poucos deram algo de realmente novo ao mundo. mas, enfim, eram a trilha sonora das ondas.
com o tempo, fiquei um pouco medroso com o mar. quem diria que um velho de trinta anos teria mais medo do mar que um menino de onze. acontece. a praia, ela mesma, foi deixada de lado. trocada por cinemas, bares, noitadas, estudos, trabalho, e muito ar condicionado. curiosamente, a surf music também deixou de povoar meus verões. surf music sem praia não faz verão.
nesse natal, chegou em minhas mãos um disco do surfista e doublé de cantor jack johnson, in between dreams. voz suave e violão, baladas calmas e espirituosas. johnson pode ser excessivamente simples e repetitivo, nada original, um guitarrista e cantor mediano. mas nos passa sempre, sempre um contagiante alto astral. sua música relaxa e conforta, e nos remete a um mundo sem engarrafamentos, stress, poluição, em que podemos lagartear descompromissadamente sob o sol. não é nada demais, mas, céus, como combina com o calor da praia e o sal no corpo. johnson consegue ser a trilha sonora de qualquer verão com praia.
o disco terminou, não resisti, encontrei meu antigo pé de pato e, isso mesmo, fui pegar umas ondas. na minha idade, com parca habilidade, nem olhei pra velha morey, me restava apenas o bom e velho jacaré, pegar onda no peito e no braço – o que os modernosos chamam hoje de bodysurfing. mas fui à praia com a convicção de que poderia enfrentar aquele mar de novo. sentei na areia, o mar de ressaca, ondas altas, olhei para o posto dos salva vidas e notei que um deles me olhava inquisidor. o que aquele branquelo estava pensando? nem liguei, vesti os pés de pato, fiz o sinal da cruz e entrei. desci logo na rainha da série, dei um parafuso e despenquei. emergi exultante, feliz comigo mesmo. passei duas horas dentro d’água lembrando dos bons tempos. voltei pra casa e pus o disco do jack de novo. e pensei. velho? às favas!
nesse verão, se um dia foi surfista ou já gostou de praia, escute jack johnson. não renegue o passado, não se envergonhe de um dia ter usado longas e frouxas bermudas, cabelo parafinado ou pasta d’água no nariz. resgate sua velha prancha, seus pés de pato. pegue umas ondas. pode ser meio desajeitado a princípio. é, pode ser ridículo mesmo. pode ser excessivamente nostálgico. mas é bom. e, sim, os velhos são os outros. sempre.

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